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sábado, 2 de dezembro de 2017


O Livro dos Sábios (1870)

 
6 de 10 - DISCUSSÕES EM FORMA DE DIÁLOGO

 
SEXTO DIÁLOGO - UM MÉDICO e ELIPHAS LEVI
O MÉDICO — Queres permitir que te tome o pulso?
ELIPHAS LEVI — Parece-te que tenho febre?
O MÉDICO — Oh! Não te quero comparar a Basílio, apesar de que não podes impedir-nos de trabalhar um pouco para ele.
ELIPHAS LEVI — Como assim?
O MÉDICO — Oh! Bem o sabes. És um livre pensador e queres que os dogmas absurdos sejam respeitados para maior satisfação de Basílio.
ELIPHAS LEVI — Não creio que Basílio seja um grande partidário dos dogmas explicados pela filosofia.
O MÉDICO — E Basílio tem razão, porque um dogma explicado é um dogma morto; não se estuda mais a anatomia senão sobre os cadáveres; não se dissecam os vivos.
ELIPHAS LEVI — A tua comparação é falha Doutor; porque os dogmas são espíritos e o espírito não poderia morrer para ser dissecado como os corpos. Achar a palavra de um enigma não é suprimir o seu texto, seguidamente engenhoso. Esclarecer e por acaso destruir?
O MÉDICO — Quando a esfinge é adivinhada, torna-se morta; introduzir uma luz numa lanterna de papel de seda é atear fogo à lanterna. Um mistério explicado deixa de sê-lo; a fé e o sonho da ignorância; quando se alcança a ciência, o espírito acorda e o sonho para; sonhar acordado é estar louco e é a isto que queres conduzir-nos; no entanto, como me parece que és de muito boa fé, duvido da tua saúde e venho tomar-te o pulso.
ELIPHAS LEVI — Doutor, acreditas na medicina?
O MÉDICO — Não, por certo que não acredito nela. Estudei-a e tenho a pretensão de conhecê-la.
ELIPHAS LEVI — E os aforismos desta ciência jamais te pareceram duvidosos?
O MÉDICO — Jamais; quando a sua verdade me é demonstrada.
ELIPHAS LEVI — Rejeitas tudo o que não está demonstrado?
O MÉDICO — Não o estudo, porém, não creio em nada antes de saber.
ELIPHAS LEVI — Porém quando se sabe, tem-se deixado de crer; por conseguinte, jamais acreditastes em nada; não credes em nada e jamais crerás em nada. Se isto é certo, compadeço-me de ti, Doutor, porque não amaste nunca e não amarás jamais.
O MÉDICO — Oh! Nada de sentimentalismo místico! Amo a minha mãe e aos meus filhos porque sei.
ELIPHAS LEVI — Sim, sabes e sabias tudo aquilo, porém nada de tudo aquilo te foi demonstrado e não pode ser demonstrado ainda. Não poderia ter sido trocado de ama? Tua mulher e teus filhos...
Crês e tens razão em crer na fidelidade da primeira e na legitimidade dos últimos; porém tudo isto, Doutor, não é ciência, é fé.
O MÉDICO — É uma fé razoável!
ELIPHAS LEVI — Eis aí a palavra que eu desejava fazer-te dizer; fé razoável; é a palavra de São Paulo e é também a minha. Não peço outra coisa.
O MÉDICO — Não confundamos! Falo da fé humana e natural, que é essencialmente razoável; tu, pelo contrário, falas da fé religiosa e sobrenatural, necessariamente absurda porque supõe uma revelação do infinito ao finito por meio do mistério eternamente incompreensível do qual há que se adorar a fórmula sem procurar jamais o seu sentido, o que equivale a dizer que Deus proíbe aos homens a razão e impõe-lhes a demência. Que é um louco, na realidade? É um homem que crê nas alucinações do seu cérebro mais do que no bom senso de todos; é um crente extravagante e obstinado que opera segundo o que imagina e não em consequência do que vê desafio-te a não reconhecer neste retrato os pretensos santos de tua igreja católica.
ELIPHAS LEVI — Desejaria ser louco como São Vicente de Paula.
O MÉDICO — Oh! E quanto a esse! Sabes o que dele tem-se dito com muita fineza; era um bom homem, ao qual prejudicaram muito canonizando-o.
ELIPHAS LEVI — És intratável; porém ensaiemos outro arrazoamento: admites que o sentimento religioso existe nos homens e que é um facto fisiológico com o qual a ciência deve contar?
O MÉDICO — Sim, reconheço a existência desta doença em um grande número de homens e estou em condições de provar-te que possuem os caracteres completos da alie nação mental.
Reconheço pela causa o desgosto pela realidade e o desejo melancólico pelas quimeras, uma ambição desmedida e uma presunção que faz crer ao homem que pode-se apropriar da eternidade e da imensidão, domínio de um Deus que o homem representa como sua própria imagem acrescentada; e, enchendo o céu com as suas proporções colossais. O homem tomado deste mal usa os meios mais directamente opostos ao fim a que se propõe; quer ser imortal e deixa-se morrer todos os dias; quer ser objecto das predilecções de Deus e volta-se odioso e insuportável aos homens, mesmo aos mais imperfeitos. Censura, molesta e atormenta aos demais, sob o pretexto de amá-los; no fundo não os ama mais do que as suas crenças, não admite que se as discuta; a contradição sobre este assunto tornam furioso, foge daqueles o que quiserem desenganá-lo e toma-lhes medo, como os alienados o fazem com os médicos.
ELIPHAS LEVI — Disseste tudo? Não me falarás um pouco também das matanças cometidas sob o pretexto da religião, dos autos de fé e de São Bartolomeu? Sei tudo isto tão bem como tu; afectai-te como o fazem sempre os adversários dos crentes, para confundir com a religião, a superstição e o fanatismo, pelo que toda a gente honesta tem aversão.
O MÉDICO — A superstição e o fanatismo são o absoluto em religião; os crentes razoáveis são mornos; o homem que segue as luzes do bom sentido opera como um filósofo e não como um devoto; um dogma absurdo exige um culto insensato. Falai-me dos estilistas, dos encouraçados, dos silenciários, dos que andam descalços, dos mortos de fome, de São Cucufin, de São Labre: eis aqui os verdadeiros crentes! E não digas que abandonastes estas pessoas; são as preferidas da tua Igreja que tem predicado sempre e ainda predica a santa loucura da cruz.
ELIPHAS LEVI — Eram homens de outro século; os tempos mudaram e os costumes também.
O MÉDICO — Só os dogmas são imutáveis. Tal é, ao menos, a pretensão dos crentes; porém mudam sempre em sentido inverso das ideias e dos costumes.
ELIPHAS LEVI — Que entendes por isso?
O MÉDICO — Entendo que os dogmas, para imobilizarem-se, materializarem-se cada vez mais, à medida que o progresso das ciências tendem a explicá-los espiritualizando-os em maior proporção. A teologia oficial é a ciência de embalsamar as crenças mortas e mudar em múmias os símbolos outrora viventes.
ELIPHAS LEVI — Estás errado ao dizer embalsamar; a tua expressão lembra-me os perfumes de Roma, desse muito odorífico Veuillot; se lestes os meus livros, deves saber que penso como vós sobre o farisaísmo antigo e moderno, sobre a falsa teologia, etc.; porém, tudo isto não é a verdadeira religião.
O MÉDICO — É como se dissesses que o que se faz, combina-se e prepara-se em todos os escritórios da Europa, não é a verdadeira política.
ELIPHAS LEVI — Não seria conveniente para ti desafiar-me demais em dizê-lo.
O MÉDICO — Então fica entendido, não há outra política senão a que sonhas, não há outra religião que o teu misticismo pessoal, azul para iluminar as nuvens que não te parecem de boa cor. Sinto haver-te feito falar tanto, pois isto te exalta e te prejudica; deixa dormir um pouco o teu farrapo de ciências ocultas; não fiques só, faz exercícios, submete-te a um regime refrescante e sobretudo não fumes demais.
ELIPHAS LEVI – (Rindo) — Obrigado pela vossa receita Doutor; creio que os teus conselhos são bons e desejaria dar-te, por minha vez, algumas prescrições higiénicas; porém, desafortunadamente considero-te incurável.
O MÉDICO — Porquê?
ELIPHAS LEVI — Porque não estás doente.
O MÉDICO — Assim, consideras que tenho ganha a causa e que te converti.
ELIPHAS LEVI — Oh! Nada disto, tu não estás doente; porém, falta-te um sentido; vês muito bem, porém não enxergas senão com um só olho; tudo isto moralmente, bem entendido.
O MÉDICO — O olho que me falta não será casualmente o que Victor Consideránt queria pôr na extremidade de uma cauda?
ELIPHAS LEVI — Pode ser Doutor; e visto que ris, a nossa conversa está terminada.


(Continua)

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