O HOMEM - A HUMANIZAÇÃO
Vimos
qual a origem do homem, vulgarmente aceite, e certas dúvidas que se põem, no
seu desenvolvimento mecânico e respectivas causas. Falta-nos agora saber como
se processou também o seu desenvolvimento mental, a par da evolução física
exterior.
Sabe-se
que a “mente” e o seu nível constituem o resultado de uma longa evolução,
biológica, primeiro, e cultural depois. A julgar pelo que se conclui dos restos
fósseis encontrados pelos paleontólogos, o cérebro dos hominídeos não
experimentou grandes progressos até ao começo do Pleistoceno. No entanto, desde
há aproximadamente meio milhão de anos, o crescimento do córtex dos hominídeos
experimentou uma aceleração brusca, enquanto outras estruturas inferiores
permaneciam relativamente estabilizadas. Em consequência desta falta de
sincronia evolutiva entre as estruturas neocorticais, lançadas desde meados do
Pleistoceno num crescimento sem paralelo na história da evolução, e as
estruturas mais primitivas do cérebro interno, estabilizadas no mesmo nível que
fundamentalmente haviam atingido milhões de anos antes, produziu-se no homem
uma falta de coordenação entre ambos os estratos da actividade mental.
Para empregar as
palavras do professor Paul Maclean, neurobiologista que entre outros defende
esta teoria, é a esta falta de sincronia evolutiva que se deve o facto de as
nossas funções intelectuais serem exercidas pelos estratos mais recentes e mais
desenvolvidos do cérebro, enquanto a nossa vida afectiva e os apetites
continuam a ser dominados por um sistema primitivo basicamente reptiliano.
Semelhante
situação - que Maclean classifica de esquizofisiológica - explicaria a
diferença que muitas vezes existe entre os juízos da razão e exigências do sentimento
e, finalmente, contribuiria para explicar essas contradições entre a “besta” e
o “anjo” que acompanham, como a sombra acompanha o corpo, a vida de todo o ser
humano.
As
implicações desta falta de sincronia da evolução são óbvias, pois uma espécie,
cuja capacidade intelectual produziu o comando da energia física nos termos
termonucleares de hoje, num dado momento pode, sob os poderosos impulsos
agressivos de um cérebro emocional não coordenado com o intelectual, chegar à
destruição da vida sobre o planeta, o que representa, por outras palavras, o
suicídio da espécie.
Aliás,
não seria a primeira vez que um “erro” da natureza provoca uma extinção deste
género, podendo recordarmo-nos, por exemplo, que o homem de Neandertal
desapareceu subitamente no Paleolítico, há uns 40 000 anos, sem que saibamos
como, para ser substituído pelo de Cró-Magnon - que se sabe não ser um produto
evoluído dos anteriores, mas sim vindo de outra espécie desconhecida.
Assim,
a possibilidade da nossa espécie se extinguir e ser substituída por outra não é
absurda nem impossível, ou improvável.
Grandes
diferenças físicas e estruturais distinguem as espécies mais evoluídas, sendo
de forma flagrante a distância que existe entre o homem e todos os outros
animais, como se poderá verificar na sua formação e volume cerebral.
A
capacidade craniana dos símios ficou estabilizada desde há quarenta milhões de
anos em cifras que, sendo muito superiores às do resto dos mamíferos - em
números relativos ao volume total destes - são muito inferiores às atingidas
pelos hominídeos no decurso duma grande “explosão cefálica” ocorrida no último
milhão de anos.
Os
orangotangos têm uma capacidade craniana média de 400 cc. A dos chimpanzés é de
450 cc. Os gorilas chegam habitualmente a 500 cc., atingindo nalguns casos até
600 cc. A capacidade média do Homo
Sapiens é, no entanto, de 1 000 cc., mais do que a do símio bem dotado. Os
restos dos Australopitecus e outros de África, de há um milhão de anos, acusam
uma capacidade craniana de 600 cc.
Duzentos
mil anos mais tarde, os restos encontrados do Pitecantropus Erectus
(antropóide muito semelhante a nós) acusam uma capacidade craniana de mais de 1
000 cc., já muito superior à dos seus antecessores. O homem de Java - 700 000
anos a.C. - e o Sinantropus Pekinensis atingem capacidades à volta
dos 1 300 cc., mais próximos do Homo Sapiens. O homem de Neandertal, duzentos
mil anos depois, apresenta capacidades da ordem dos 1 500 cc., análogas às da
nossa espécie.
Até
50 000 anos a.C., o homem de Cro-Magnon substituiu rapidamente o de Neandertal
com uma capacidade craniana que chega a atingir cifras até 2 000 cc., as quais
talvez sejam superadas pelo homem do futuro.
Em
suma, durante o Pleistoceno, em pouco mais de um milhão de anos, a família dos
hominídeos experimentou uma expansão craniana totalmente revolucionária na
História. A julgar pelo que afirmam alguns biólogos especializados em anatomia
do cérebro, a evolução cerebral humana ainda não se deteve, havendo indícios de
que a zona do córtex que mais directamente parece intervir no exercício das
funções intelectuais continua a fazer pressão sobre o crânio numa espécie de
esforço por obter maior espaço para a sua expansão.
Uma
vez concluído o processo de hominização, ou seja, constituído o género Homo
como entidade biológica madura, iniciou-se imediatamente uma actividade sem
precedentes na história da vida - a actividade cultural e invenção de uma nova
maneira de existir - separando definitivamente o homem de todas as espécies
convertendo-o, com efeito, em “rei da criação”.
Esta
actividade especificamente humana, em virtude da qual nos convertemos no que
hoje somos, começou por ser muito rudimentar, mal se distinguindo da actividade
adaptativa dos animais superiores. As diferenças, a princípio aparentemente
pequenas, logo passaram a ser suficientemente importantes para produzirem, com
o tempo, dois modos de vida tão diferentes como o do homem e o do resto dos
animais. A princípio, a actividade instrumental do homem foi muito elementar e
funcionou ao serviço de fins biológicos muito elementares - alimentação,
defesa, alojamento - mas diferenciou-se das dos símios mais próximos no facto
de que estes, naturalmente capazes de atirar pedras, de utilizar um pau como
bastão ou de converter um ramo em instrumento para roubar mel de uma colmeia,
nunca chegaram a transcender os limites desta actividade instrumental de
primeira ordem.
O
passo seguinte, provavelmente unido ao desenvolvimento da linguagem, consistiu
em ampliar os fins biológicos, de pura sobrevivência, com valores religiosos e
artísticos totalmente desconhecidos no mundo animal. O ser humano começou a
enterrar os seus mortos de acordo
com normas inventadas por
ele mesmo, começou a construir adornos para o seu corpo e a decorar as suas
cavernas com pinturas e símbolos.
A humanização tinha
começado.
E
para exprimir a transformação sem precedentes que a vida do nosso planeta
experimentou, nada melhor do que reproduzir as palavras de um contemporâneo de
Darwin, Alfred R. Wallace, que também formulou algumas leis da evolução
biológica: “Desde o momento em que foi usada a
primeira pele como peça de vestuário, desde o instante em que pela primeira vez
se utilizou uma lança para a caça ou se plantou a primeira semente, realizou-se
uma grande revolução na natureza, uma revolução sem paralelo em todos os
milénios anteriores, porque acabava de surgir um ser que não precisava de
continuar submetido por mais tempo às modificações da natureza, um ser que em
certo aspecto era superior à própria natureza, porquanto sabia como controlar e
regular as suas operações, e podia manter-se em harmonia com ela, não através
de modificações corporais, mas mediante um progresso da mente ...”.
O
homem não tinha simplesmente escapado ao império da "selecção
natural". Tinha inclusivamente obtido para si uma parte do poder que,
antes do seu aparecimento, era exercido exclusivamente pela natureza. Podemos
pois prever um tempo em que a Terra só produzirá plantas cultivadas e animais
domésticos, um tempo em que a selecção humana terá deslocado a selecção
natural. Deste modo, supõe-se que nestas fases de transformação mais
importantes, se deve salientar já a actuação do homem de Neandertal que sabia
utilizar o fogo, o que lhe facilitava a vida em regiões próximas dos gelos, na
Europa e na Ásia, da época glaciar e dominar a técnica de preparação das peles,
explicando a habitação em grutas que então, pela primeira vez, se transforma em
acontecimento normal.
A
característica mais admirável de tais gentes, como atrás dissemos, assenta nas
suas actividades espirituais pelo cuidado posto na inumação dos seus mortos.
O
homem de Cro-Magnon, mais perfeito, de sólido esqueleto e mente ágil, provoca
uma mudança profunda na história humana, ou seja a grande “época da caça”,
notando-se desde o seu começo, a melhoria das técnicas de trabalho do sílex, onde substituem as grossas pontas
triangulares em lâminas delgadas, das quais se obtêm utensílios muito variados
- buris, raspadeiras, pontas, serras, perfuradores - completando a riqueza da
utensilagem com o osso e o chifre trabalhados.
O
seu contraste com o homem de Neandertal é bem visível, mas à maravilha que o
homem conseguiu ao longo de tantos milénios faltava algo complementar para nos
aproximarmos melhor destes antepassados e que marcasse de facto uma evolução
superior e diferente dos outros animais, ou seja, numa palavra, a Arte, essa manifestação espiritual da
vida de todo o ser racional, que constitui sem dúvida uma das características
mais notáveis da humanidade.
Pouco
se sabe sobre em que época poderá ter surgido essa manifestação superior da
vida animal, e apesar de alguns autores pretenderem que tenha havido vislumbres
dessas manifestações antes do homem de Neandertal, a maioria (até uma prova em
contrário) prefere supor que não houve criação artística até um momento já
adiantado do Paleolítico superior, há volta de 30 000 anos.
A
partir dessa data - com o homem de Cro-Magnon - o processo artístico evolui e
difunde-se por todo o mundo, como provam as pinturas em grutas e objectos
encontrados. Neste período - da arte rupestre - o homem tinha alcançado, com o
pleno amadurecimento mental, o nível máximo de civilização permitida pelas
condições do meio em que se deslocava.
A
caça, actividade preferida pelos grupos humanos, e o carácter gregário das
mesmas, agrupadas em manadas ou rebanhos, facilita a ideia da especialização
que, por outro lado, é fruto de uma preocupação do homem para obter uma base
económica mais segura e estável. Esta caça especializada exige um enorme
desenvolvimento da capacidade de observação, e há um abismo entre essa
actividade inteligente e a recolecção indiscriminada que praticavam as hordas
primitivas guiadas exclusivamente pelo instinto. Um grupo humano, ao
vincular-se a uma actividade concreta, tende para o aproveitamento total da
espécie caçada, iniciando-se uma economia de conservação em oposição à economia
destrutiva levada até ali.
Para
os grupos de caçadores especializados torna-se vital a conservação da espécie
caçada, e a limitação por um lado e concentração da vida por outro, despertam a
solução inteligente, com a prática de ensaios de cultivo e domesticação de
animais, para o problema da subsistência. A agricultura e os animais domésticos
constituem assim a base de uma nova economia de produção de consequências
transcendentes para o progresso da civilização.
A
actividade agrícola vincula estreitamente o homem à terra, transformando-se o habitat , onde o acampamento nómada
dá lugar ao povoamento estável que
consequentemente apresenta problemas cuja solução, no sentido de obter maiores
comodidades, implica uma racionalização do trabalho.
O
esforço acentua o carácter colectivo, pois que toda a colectividade é
beneficiária dos resultados obtidos, espalhando-se esta actividade pelo globo
com a imposição da nova economia de produção - agricultura e pastoreio. Para a
distribuição dos excedentes, a que este sistema levou, são necessárias novas
utensilagens fabricando-se pela primeira vez manufacturas não destinadas aos
próprios produtores mas à venda exterior, o que requer a organização da sua
distribuição e o uso de um sistema adequado de transporte.
O
homem depara com essas novas necessidades mediante o desenvolvimento de dois
princípios: a navegação e a roda. Quanto à navegação é difícil saber em que
altura se construiu a primeira embarcação, se bem que a sua utilização
funcional seja já Neolítica - princípios do Quaternário.
No
transporte terrestre, utilizam a tracção animal ou utilizam os animais para
montadas, mas a verdadeira revolução é causada pela aplicação da roda ao
transporte e pelo aparecimento do carro - 5 000 anos aproximadamente.
Quanto
à economia, também em revolução com as novas técnicas e transportes, surgem
autênticas indústrias, onde as tradicionais do sílex e obsidiana se transformam em verdadeiras minerações, pois o
homem não se limitando a recolher esses materiais, onde os encontra, vais
procurá-los e organiza a sua exploração.
Uma
técnica que atinge grande desenvolvimento é a lavra e o polimento da pedra,
dando lugar a um comércio vasto, mas de valor local. A aplicação da técnica de
polimento na fabricação de gemas, jóias, contas de colar e amuletos de pedras
preciosas ou semipreciosas, atingiu, por outro lado, um valor extraordinário no
rol das manufacturas pré-históricas. A procura de pedras preciosas e a
observação das suas diversas qualidades levaram o homem à descoberta dos
metais, sua meabilidade e possibilidades de adaptação a certos objectos
necessários e úteis, como o cobre para toda a espécie de utensílios e armas.
Com o tempo, grande procura e esgotamento das reservas minerais, surgiu a
necessidade de o extrair de outros minerais cupríferos - o que deu lugar à
metalurgia - e também a necessidade de o tornar mais duro, para as práticas
guerreiras, exigiu bastantes experiências de ligas com outros metais, descobrindo
o estanho e obtenção do verdadeiro bronze.
As
consequências da descoberta do bronze e suas percussões na cultura espiritual e
artística foi de tal modo grande que marcaram época histórica, sendo esse
período denominado de idade do bronze.
Com
a metalurgia do ferro, mais difícil de se propagar pelo globo, devido ao seu
enorme interesse e segredo mantido pelos seus detentores, a história humana
sofre outra revolução transcendente e marca nova época - a idade do ferro.
Para
sermos mais objectivos, basta lembrar os grandes impérios da antiguidade e seus
feitos, que são produto destas épocas evolutivas da humanidade, onde os mais
sabedores e conhecedores destas técnicas revolucionárias tinham grande avanço
sobre os outros povos, valendo-se mesmo desses conhecimentos para os dominarem
pela força. Podemos citar o Egipto, Assíria, Mesopotâmia, Greta, Grécia, Roma,
Pérsia e muitos outros, que atingiram o auge e poderio pelos seus
conhecimentos.
E
até hoje, o homem não deixou de evoluir tecnicamente, sendo verdadeiramente
fantásticas as descobertas feitas, desde a máquina a vapor, passando pela
electricidade, até ao controlo da energia atómica e conquista do espaço
sideral. O único senão, é que, como sempre, o homem detentor destas novas
descobertas procura sempre impor o seu poderio sobre os outros.
Resumindo:
a evolução cultural da humanidade pode dividir-se em períodos característicos: Em
princípio a actividade instrumental seria quase de pura sobrevivência e ao
serviço de fins biológicos, compatíveis com o canibalismo e abandono dos
mortos. Um segundo período, denominado pré-histórico, caracteriza-se por duas
épocas distintas - não agrícola e
agrícola. No início destas épocas - 200 000 anos, como se supõe - as técnicas
de subsistência são principalmente a colheita de frutos e sementes silvestres,
a caça e a pesca. Os instrumentos de pedra, osso e possivelmente de madeira,
variam no seu grau de elaboração. Mais tarde com a introdução do Homo Sapiens - 35 000 anos mais ou menos
- dedicam-se à caça especializada, com uma tecnologia e habitat mais aperfeiçoados e uma arte em embrião.
Na
segunda época - agrícola - são
típicas as culturas elementares e o começo da domesticação de alguns animais,
um período que dura à volta de 5 000 anos - de 10 000 a 5 000 anos a.C. -
começando então o seu desenvolvimento com uma agricultura e criação de gado
desenvolvidas, constituição dos primeiros agrupamentos urbanos e organização
social mais diferenciada. Aparecem os bastões para cavar, a irrigação, o adubo,
a tracção animal, a roda e o armazenamento de produtos.
Um
terceiro período na evolução cultural - denominado Histórico - é demarcado com o aparecimento da escrita, que se pode
também distinguir por fases ou épocas demarcantes: Primeiras Civilizações;
Civilização Moderna; Civilização Actual.
As
Primeiras Civilizações caracterizam-se pelo uso dos metais, o domínio do ar e
da água para a navegação à vela e o movimento dos moinhos, o progresso da
agricultura, a organização das cidades e a divisão do trabalho, juntando-se a
tudo isto a descoberta da escrita. Do ponto de vista científico, técnico e
económico, esta fase dura até ao século XVII. A evolução de outros aspectos da
cultura, pelo contrário, segue um curso menos linear.
A
Civilização Moderna como notas distintivas apresenta o aparecimento da nova
Ciência, no século XVII e a irrupção da revolução industrial em fins do século
XVIII, bem como da revolução francesa na ordem política. Perfila-se nestes
séculos o início do processo da secularização das crenças religiosas e de fé
num progresso material que, com efeito, é realizado.
A
Civilização Actual, finalmente, depois da invenção de novas fontes de energia -
electricidade, motores de explosão - e descobertas recentes da energia atómica,
dos computadores e novas formas de comunicação, fizeram com que o mundo
entrasse num período de transformação acelerada que afecta profundamente a
nossa mentalidade.
Na
ordem social, o espectacular desenvolvimento do marxismo revela talvez as
dimensões gigantescas das transformações que se operam na humanidade. Para
estas transformações, na sua globalidade, tem influência o ser humano em si e a
sua organização interna, no campo psicológico, ou “nervosa”, extremamente
complexa, que condiciona o seu comportamento tão diferente e tão distante do comportamento
dos outros animais. Esta sua organização, única, criou um ser tão diferente e
tão evoluído que justifica um quarto reino da natureza - o Humano - onde só ele tem lugar, pois não existe ser algum, na
Terra, com características semelhantes para também ser integrado nesse reino.
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