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sábado, 2 de março de 2019


O HOMEM - A HUMANIZAÇÃO

Vimos qual a origem do homem, vulgarmente aceite, e certas dúvidas que se põem, no seu desenvolvimento mecânico e respectivas causas. Falta-nos agora saber como se processou também o seu desenvolvimento mental, a par da evolução física exterior.

Sabe-se que a “mente” e o seu nível constituem o resultado de uma longa evolução, biológica, primeiro, e cultural depois. A julgar pelo que se conclui dos restos fósseis encontrados pelos paleontólogos, o cérebro dos hominídeos não experimentou grandes progressos até ao começo do Pleistoceno. No entanto, desde há aproximadamente meio milhão de anos, o crescimento do córtex dos hominídeos experimentou uma aceleração brusca, enquanto outras estruturas inferiores permaneciam relativamente estabilizadas. Em consequência desta falta de sincronia evolutiva entre as estruturas neocorticais, lançadas desde meados do Pleistoceno num crescimento sem paralelo na história da evolução, e as estruturas mais primitivas do cérebro interno, estabilizadas no mesmo nível que fundamentalmente haviam atingido milhões de anos antes, produziu-se no homem uma falta de coordenação entre ambos os estratos da actividade mental.

Para empregar as palavras do professor Paul Maclean, neurobiologista que entre outros defende esta teoria, é a esta falta de sincronia evolutiva que se deve o facto de as nossas funções intelectuais serem exercidas pelos estratos mais recentes e mais desenvolvidos do cérebro, enquanto a nossa vida afectiva e os apetites continuam a ser dominados por um sistema primitivo basicamente reptiliano.

Semelhante situação - que Maclean classifica de esquizofisiológica - explicaria a diferença que muitas vezes existe entre os juízos da razão e exigências do sentimento e, finalmente, contribuiria para explicar essas contradições entre a “besta” e o “anjo” que acompanham, como a sombra acompanha o corpo, a vida de todo o ser humano.

As implicações desta falta de sincronia da evolução são óbvias, pois uma espécie, cuja capacidade intelectual produziu o comando da energia física nos termos termonucleares de hoje, num dado momento pode, sob os poderosos impulsos agressivos de um cérebro emocional não coordenado com o intelectual, chegar à destruição da vida sobre o planeta, o que representa, por outras palavras, o suicídio da espécie.

Aliás, não seria a primeira vez que um “erro” da natureza provoca uma extinção deste género, podendo recordarmo-nos, por exemplo, que o homem de Neandertal desapareceu subitamente no Paleolítico, há uns 40 000 anos, sem que saibamos como, para ser substituído pelo de Cró-Magnon - que se sabe não ser um produto evoluído dos anteriores, mas sim vindo de outra espécie desconhecida.

Assim, a possibilidade da nossa espécie se extinguir e ser substituída por outra não é absurda nem impossível, ou improvável.

Grandes diferenças físicas e estruturais distinguem as espécies mais evoluídas, sendo de forma flagrante a distância que existe entre o homem e todos os outros animais, como se poderá verificar na sua formação e volume cerebral.

A capacidade craniana dos símios ficou estabilizada desde há quarenta milhões de anos em cifras que, sendo muito superiores às do resto dos mamíferos - em números relativos ao volume total destes - são muito inferiores às atingidas pelos hominídeos no decurso duma grande “explosão cefálica” ocorrida no último milhão de anos.

Os orangotangos têm uma capacidade craniana média de 400 cc. A dos chimpanzés é de 450 cc. Os gorilas chegam habitualmente a 500 cc., atingindo nalguns casos até 600 cc. A capacidade média do Homo Sapiens é, no entanto, de 1 000 cc., mais do que a do símio bem dotado. Os restos dos Australopitecus e outros de África, de há um milhão de anos, acusam uma capacidade craniana de 600 cc.

Duzentos mil anos mais tarde, os restos encontrados do Pitecantropus Erectus (antropóide muito semelhante a nós) acusam uma capacidade craniana de mais de 1 000 cc., já muito superior à dos seus antecessores. O homem de Java - 700 000 anos a.C. - e o Sinantropus Pekinensis atingem capacidades à volta dos 1 300 cc., mais próximos do Homo Sapiens. O homem de Neandertal, duzentos mil anos depois, apresenta capacidades da ordem dos 1 500 cc., análogas às da nossa espécie.

Até 50 000 anos a.C., o homem de Cro-Magnon substituiu rapidamente o de Neandertal com uma capacidade craniana que chega a atingir cifras até 2 000 cc., as quais talvez sejam superadas pelo homem do futuro.

Em suma, durante o Pleistoceno, em pouco mais de um milhão de anos, a família dos hominídeos experimentou uma expansão craniana totalmente revolucionária na História. A julgar pelo que afirmam alguns biólogos especializados em anatomia do cérebro, a evolução cerebral humana ainda não se deteve, havendo indícios de que a zona do córtex que mais directamente parece intervir no exercício das funções intelectuais continua a fazer pressão sobre o crânio numa espécie de esforço por obter maior espaço para a sua expansão.

Uma vez concluído o processo de hominização, ou seja, constituído o género Homo como entidade biológica madura, iniciou-se imediatamente uma actividade sem precedentes na história da vida - a actividade cultural e invenção de uma nova maneira de existir - separando definitivamente o homem de todas as espécies convertendo-o, com efeito, em “rei da criação”.

Esta actividade especificamente humana, em virtude da qual nos convertemos no que hoje somos, começou por ser muito rudimentar, mal se distinguindo da actividade adaptativa dos animais superiores. As diferenças, a princípio aparentemente pequenas, logo passaram a ser suficientemente importantes para produzirem, com o tempo, dois modos de vida tão diferentes como o do homem e o do resto dos animais. A princípio, a actividade instrumental do homem foi muito elementar e funcionou ao serviço de fins biológicos muito elementares - alimentação, defesa, alojamento - mas diferenciou-se das dos símios mais próximos no facto de que estes, naturalmente capazes de atirar pedras, de utilizar um pau como bastão ou de converter um ramo em instrumento para roubar mel de uma colmeia, nunca chegaram a transcender os limites desta actividade instrumental de primeira ordem.
 

O passo seguinte, provavelmente unido ao desenvolvimento da linguagem, consistiu em ampliar os fins biológicos, de pura sobrevivência, com valores religiosos e artísticos totalmente desconhecidos no mundo animal. O ser humano começou a enterrar os seus mortos de acordo com normas inventadas por ele mesmo, começou a construir adornos para o seu corpo e a decorar as suas cavernas com pinturas e símbolos.

 


 
A humanização tinha começado.

E para exprimir a transformação sem precedentes que a vida do nosso planeta experimentou, nada melhor do que reproduzir as palavras de um contemporâneo de Darwin, Alfred R. Wallace, que também formulou algumas leis da evolução biológica: “Desde o momento em que foi usada a primeira pele como peça de vestuário, desde o instante em que pela primeira vez se utilizou uma lança para a caça ou se plantou a primeira semente, realizou-se uma grande revolução na natureza, uma revolução sem paralelo em todos os milénios anteriores, porque acabava de surgir um ser que não precisava de continuar submetido por mais tempo às modificações da natureza, um ser que em certo aspecto era superior à própria natureza, porquanto sabia como controlar e regular as suas operações, e podia manter-se em harmonia com ela, não através de modificações corporais, mas mediante um progresso da mente ...”.

O homem não tinha simplesmente escapado ao império da "selecção natural". Tinha inclusivamente obtido para si uma parte do poder que, antes do seu aparecimento, era exercido exclusivamente pela natureza. Podemos pois prever um tempo em que a Terra só produzirá plantas cultivadas e animais domésticos, um tempo em que a selecção humana terá deslocado a selecção natural. Deste modo, supõe-se que nestas fases de transformação mais importantes, se deve salientar já a actuação do homem de Neandertal que sabia utilizar o fogo, o que lhe facilitava a vida em regiões próximas dos gelos, na Europa e na Ásia, da época glaciar e dominar a técnica de preparação das peles, explicando a habitação em grutas que então, pela primeira vez, se transforma em acontecimento normal.

A característica mais admirável de tais gentes, como atrás dissemos, assenta nas suas actividades espirituais pelo cuidado posto na inumação dos seus mortos.

O homem de Cro-Magnon, mais perfeito, de sólido esqueleto e mente ágil, provoca uma mudança profunda na história humana, ou seja a grande “época da caça”, notando-se desde o seu começo, a melhoria das técnicas de trabalho do sílex, onde substituem as grossas pontas triangulares em lâminas delgadas, das quais se obtêm utensílios muito variados - buris, raspadeiras, pontas, serras, perfuradores - completando a riqueza da utensilagem com o osso e o chifre trabalhados.

O seu contraste com o homem de Neandertal é bem visível, mas à maravilha que o homem conseguiu ao longo de tantos milénios faltava algo complementar para nos aproximarmos melhor destes antepassados e que marcasse de facto uma evolução superior e diferente dos outros animais, ou seja, numa palavra, a Arte, essa manifestação espiritual da vida de todo o ser racional, que constitui sem dúvida uma das características mais notáveis da humanidade.

Pouco se sabe sobre em que época poderá ter surgido essa manifestação superior da vida animal, e apesar de alguns autores pretenderem que tenha havido vislumbres dessas manifestações antes do homem de Neandertal, a maioria (até uma prova em contrário) prefere supor que não houve criação artística até um momento já adiantado do Paleolítico superior, há volta de 30 000 anos.

A partir dessa data - com o homem de Cro-Magnon - o processo artístico evolui e difunde-se por todo o mundo, como provam as pinturas em grutas e objectos encontrados. Neste período - da arte rupestre - o homem tinha alcançado, com o pleno amadurecimento mental, o nível máximo de civilização permitida pelas condições do meio em que se deslocava.

A caça, actividade preferida pelos grupos humanos, e o carácter gregário das mesmas, agrupadas em manadas ou rebanhos, facilita a ideia da especialização que, por outro lado, é fruto de uma preocupação do homem para obter uma base económica mais segura e estável. Esta caça especializada exige um enorme desenvolvimento da capacidade de observação, e há um abismo entre essa actividade inteligente e a recolecção indiscriminada que praticavam as hordas primitivas guiadas exclusivamente pelo instinto. Um grupo humano, ao vincular-se a uma actividade concreta, tende para o aproveitamento total da espécie caçada, iniciando-se uma economia de conservação em oposição à economia destrutiva levada até ali.

Para os grupos de caçadores especializados torna-se vital a conservação da espécie caçada, e a limitação por um lado e concentração da vida por outro, despertam a solução inteligente, com a prática de ensaios de cultivo e domesticação de animais, para o problema da subsistência. A agricultura e os animais domésticos constituem assim a base de uma nova economia de produção de consequências transcendentes para o progresso da civilização.

 
A actividade agrícola vincula estreitamente o homem à terra, transformando-se o habitat , onde o acampamento nómada dá  lugar ao povoamento estável que consequentemente apresenta problemas cuja solução, no sentido de obter maiores comodidades, implica uma racionalização do trabalho.

O esforço acentua o carácter colectivo, pois que toda a colectividade é beneficiária dos resultados obtidos, espalhando-se esta actividade pelo globo com a imposição da nova economia de produção - agricultura e pastoreio. Para a distribuição dos excedentes, a que este sistema levou, são necessárias novas utensilagens fabricando-se pela primeira vez manufacturas não destinadas aos próprios produtores mas à venda exterior, o que requer a organização da sua distribuição e o uso de um sistema adequado de transporte.

O homem depara com essas novas necessidades mediante o desenvolvimento de dois princípios: a navegação e a roda. Quanto à navegação é difícil saber em que altura se construiu a primeira embarcação, se bem que a sua utilização funcional seja já Neolítica - princípios do Quaternário.

 

No transporte terrestre, utilizam a tracção animal ou utilizam os animais para montadas, mas a verdadeira revolução é causada pela aplicação da roda ao transporte e pelo aparecimento do carro - 5 000 anos aproximadamente.

Quanto à economia, também em revolução com as novas técnicas e transportes, surgem autênticas indústrias, onde as tradicionais do sílex e obsidiana se transformam em verdadeiras minerações, pois o homem não se limitando a recolher esses materiais, onde os encontra, vais procurá-los e organiza a sua exploração.

Uma técnica que atinge grande desenvolvimento é a lavra e o polimento da pedra, dando lugar a um comércio vasto, mas de valor local. A aplicação da técnica de polimento na fabricação de gemas, jóias, contas de colar e amuletos de pedras preciosas ou semipreciosas, atingiu, por outro lado, um valor extraordinário no rol das manufacturas pré-históricas. A procura de pedras preciosas e a observação das suas diversas qualidades levaram o homem à descoberta dos metais, sua meabilidade e possibilidades de adaptação a certos objectos necessários e úteis, como o cobre para toda a espécie de utensílios e armas. Com o tempo, grande procura e esgotamento das reservas minerais, surgiu a necessidade de o extrair de outros minerais cupríferos - o que deu lugar à metalurgia - e também a necessidade de o tornar mais duro, para as práticas guerreiras, exigiu bastantes experiências de ligas com outros metais, descobrindo o estanho e obtenção do verdadeiro bronze.

As consequências da descoberta do bronze e suas percussões na cultura espiritual e artística foi de tal modo grande que marcaram época histórica, sendo esse período denominado de idade do bronze.

Com a metalurgia do ferro, mais difícil de se propagar pelo globo, devido ao seu enorme interesse e segredo mantido pelos seus detentores, a história humana sofre outra revolução transcendente e marca nova época - a idade do ferro.

Para sermos mais objectivos, basta lembrar os grandes impérios da antiguidade e seus feitos, que são produto destas épocas evolutivas da humanidade, onde os mais sabedores e conhecedores destas técnicas revolucionárias tinham grande avanço sobre os outros povos, valendo-se mesmo desses conhecimentos para os dominarem pela força. Podemos citar o Egipto, Assíria, Mesopotâmia, Greta, Grécia, Roma, Pérsia e muitos outros, que atingiram o auge e poderio pelos seus conhecimentos.

E até hoje, o homem não deixou de evoluir tecnicamente, sendo verdadeiramente fantásticas as descobertas feitas, desde a máquina a vapor, passando pela electricidade, até ao controlo da energia atómica e conquista do espaço sideral. O único senão, é que, como sempre, o homem detentor destas novas descobertas procura sempre impor o seu poderio sobre os outros.

Resumindo: a evolução cultural da humanidade pode dividir-se em períodos característicos: Em princípio a actividade instrumental seria quase de pura sobrevivência e ao serviço de fins biológicos, compatíveis com o canibalismo e abandono dos mortos. Um segundo período, denominado pré-histórico, caracteriza-se por duas épocas distintas - não agrícola e agrícola. No início destas épocas - 200 000 anos, como se supõe - as técnicas de subsistência são principalmente a colheita de frutos e sementes silvestres, a caça e a pesca. Os instrumentos de pedra, osso e possivelmente de madeira, variam no seu grau de elaboração. Mais tarde com a introdução do Homo Sapiens - 35 000 anos mais ou menos - dedicam-se à caça especializada, com uma tecnologia e habitat mais aperfeiçoados e uma arte em embrião.

Na segunda época - agrícola - são típicas as culturas elementares e o começo da domesticação de alguns animais, um período que dura à volta de 5 000 anos - de 10 000 a 5 000 anos a.C. - começando então o seu desenvolvimento com uma agricultura e criação de gado desenvolvidas, constituição dos primeiros agrupamentos urbanos e organização social mais diferenciada. Aparecem os bastões para cavar, a irrigação, o adubo, a tracção animal, a roda e o armazenamento de produtos.

Um terceiro período na evolução cultural - denominado Histórico - é demarcado com o aparecimento da escrita, que se pode também distinguir por fases ou épocas demarcantes: Primeiras Civilizações; Civilização Moderna; Civilização Actual.

As Primeiras Civilizações caracterizam-se pelo uso dos metais, o domínio do ar e da água para a navegação à vela e o movimento dos moinhos, o progresso da agricultura, a organização das cidades e a divisão do trabalho, juntando-se a tudo isto a descoberta da escrita. Do ponto de vista científico, técnico e económico, esta fase dura até ao século XVII. A evolução de outros aspectos da cultura, pelo contrário, segue um curso menos linear.

A Civilização Moderna como notas distintivas apresenta o aparecimento da nova Ciência, no século XVII e a irrupção da revolução industrial em fins do século XVIII, bem como da revolução francesa na ordem política. Perfila-se nestes séculos o início do processo da secularização das crenças religiosas e de fé num progresso material que, com efeito, é realizado.


A Civilização Actual, finalmente, depois da invenção de novas fontes de energia - electricidade, motores de explosão - e descobertas recentes da energia atómica, dos computadores e novas formas de comunicação, fizeram com que o mundo entrasse num período de transformação acelerada que afecta profundamente a nossa mentalidade.

 

Na ordem social, o espectacular desenvolvimento do marxismo revela talvez as dimensões gigantescas das transformações que se operam na humanidade. Para estas transformações, na sua globalidade, tem influência o ser humano em si e a sua organização interna, no campo psicológico, ou “nervosa”, extremamente complexa, que condiciona o seu comportamento tão diferente e tão distante do comportamento dos outros animais. Esta sua organização, única, criou um ser tão diferente e tão evoluído que justifica um quarto reino da natureza - o Humano - onde só ele tem lugar, pois não existe ser algum, na Terra, com características semelhantes para também ser integrado nesse reino.

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