A REALIDADE
É ESTA
Partilho
este artigo de opinião de José M. Fernandes que subscrevo incondicionalmente. A
realidade é esta.
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A culpa é toda das redes sociais. E já
agora da máquina a vapor.
(in OBSERVADOR 3.01.2017) Artigo de opinião de JOSÉ MANUEL FERNANDES
(in OBSERVADOR 3.01.2017) Artigo de opinião de JOSÉ MANUEL FERNANDES
"Algo, no entanto, temos de reter:
mais do que as novas ignorâncias dos cidadãos comuns, mais do que os efeitos de
manada das redes sociais, quem tem falhado são os que insistem em não ouvir os
eleitores. Porque estes há muito que deram sinal de que querem falar, pois
estão zangados.
A vitória dos populismos em diferentes
partidas deste nosso mundo não tem uma explicação fácil. Sobretudo não tem
antídoto seguro. Mas parece que já temos um bode expiatório: as redes sociais e
a tecnologia. Se lermos os textos mais recentes de Miguel Sousa Tavares
(Expresso), José Pacheco Pereira e Paulo Rangel (ambos no Público) corremos o risco
de ficar com a percepção de que Donald Trump ganhou as eleições porque, de
repente, se descobriu uma coisa nova a que chamamos “pós-verdade”, ou que
estamos a ficar mais ignorantes (ou “novos ignorantes”) porque andamos com um smartphone no bolso e estamos sempre a consultá-lo,
ou ainda que estes instrumentos corroem o valor da liberdade em democracia.
Peço desculpa, mas acho que seguindo por
este caminho estamos de novo a tentar tapar o sol com uma peneira. E que
estamos, sobretudo, a ignorar a mensagem que os eleitores enviaram ao votarem
“errado” – pelo menos “errado” de acordo com a nossa perspectiva.
Começo recordando uma história que já
contei aqui no Observador, a de Lee Mavrakis, o mayor de Monessen, uma pequena
cidade da Pensilvânia que, depois de ter sido toda a vida um activo eleitor
democrata (e um sindicalista), acabou agora por optar por Trump. E recordo-a
por uma razão simples: a primeira coisa que Lee me disse quando entrei no seu
gabinete, em Julho do ano passado, foi que mandara retirar o computador da sua
secretária – o ecrã estava de resto virado contra uma parede numa estante,
abandonado e cheio de pó. O antigo operário siderúrgico não fazia pois ideia do
que era uma rede social, só utilizava o telemóvel para fazer chamadas e não creio
que tenha sido influenciado por qualquer das mentiras sobre Hillary Clinton
difundidas um jovem búlgaro. Ele pura e simplesmente sentia-se esquecido pelas
elites de Washington e ignorado por um Presidente Obama a quem enviara
sucessivas cartas (não emails).
Esta história vale o que vale, mas é uma
entre muitas que a imprensa americana (e de todo o mundo) começou a contar com
mais detalhe depois da surpresa das eleições. Se quisermos perceber onde é que
os diferentes populismos encontraram audiência temos de perceber quem votou
pelo Brexit em vez de diabolizar os ingleses pobres; tal como temos de
compreender o sentido profundo da arrogância que está por detrás da referência
de Hillary aos “deploráveis” ou da forma como Mateo Renzi quis impor a sua
vontade aos italianos; de perceber que há bairros inteiros em França (mas
também noutros países europeus) onde os nacionais sentem que não estão já no
seu país; e de enfrentar sem dogmas a evidência de que os cidadãos têm, um
pouco por todo o lado, a percepção que já nem pelo voto são senhores do seu
destino.
As redes sociais e a tecnologia não
criaram estas realidades. As redes sociais não passaram de bestiais (no tempo
em que ajudaram a eleger Obama ou atraiam multidões para os comícios de Bernie
Sanders) a bestas (só porque Trump é um incontinente do Twitter). As ondas
geradas pelas redes também não passaram de boas demonstrações de cidadania
(quando, por exemplo, procederam ao linchamento de Isabel Jonet) a serem apenas
uma “ditadura das massas” (quando estão menos ao nosso gosto).
A “pós-verdade” também não nasceu ontem.
Antes dela houve o boato, e sabemos como este provocou motins e até massacres
(recordam-se da chacina dos judeus de Lisboa naquela que ficou conhecido como a
“matança da Páscoa de 1506”). Ou como levou a corridas aos bancos e ao crash
das bolsas. Por vezes boatos mal-intencionados, por vezes inocentes, quase
sempre mais difíceis de combater antes deste tempo de informação instantânea.
Um pouco de memória é sempre útil para colocarmos a realidade, mesmo que
desagradável, no seu contexto. A crueldade e a irracionalidade das multidões
são parte da nossa história e nunca deixámos nem deixaremos de as enfrentar. A
Marcha sobre Roma de Mussolini não precisou do Twitter (ou da televisão) para
acontecer.
Mais: que sentido faz indignarmo-nos com
a “pós-verdade” neste tempo em que a política se faz sobretudo de “narrativas”
– um conceito introduzido em Portugal por José Sócrates e ainda hoje reclamado
pelas luminárias do PS. Ou que sentido faz reclamar que o debate público só se
faça de verdades certificadas quando os mesmos factos (os números da dívida, ou
do crescimento, ou do desemprego) podem servir copos meio-cheios e copos meio
vazios? O caminho tem de ser mais inteligente e mais racional, pois não bastará
pensar que tudo se resolverá com um batalhão de “fact checkers” a trabalhar
para o Facebook.
E aqui chegamos a um segundo campo de
problemas: o da mediação e validação da informação. Ou o da erosão do papel do
jornalismo como certificador do que é verdadeiro e do que é falso, ou como
definidor do que é importante e do que é dispensável. Mais uma vez é necessário
ter uma perspectiva de longo prazo: a crise da imprensa escrita é muito
anterior à explosão das redes sociais, começou até antes da vulgarização da
Internet (se bem que não possa ser dissociada desta última). A crise da
televisão generalista é mais recente, mas também é inelutável: num artigo
recente Tony Blair referia com mágoa que, quando foi eleito pela primeira vez,
há 20 anos, o principal noticiário da BBC era visto por 10 milhões de
britânicos; agora é visto por apenas 2,5 milhões. Podemos encontrar números
semelhantes em todos as democracias avançadas: a perda de audiência dos
principais serviços noticiosos é uma regra um pouco por todo o lado.
Porque é que isto aconteceu e continua a
acontecer? Em parte porque mudou a tecnologia e mudaram os hábitos. O
utilizador deixou de ser um espectador passivo, obrigado a seguir o alinhamento
escolhido pelos responsáveis dos telejornais – passou a escolher o que quer ver
e quando quer ver, ou o que quer ler e quando quer ler. Se já não estamos no
tempo em que Ford dizia que os clientes dos seus carros podiam escolher a cor
que quisessem desde que fosse preto, também já não estamos no tempo o
jornalista comandava sozinho o “trânsito” da informação.
Em princípio esta maior capacidade
escolha – e uma maior diversidade da oferta informativa, assim como mais
concorrência – deveriam ser notícias positivas. Porque estamos então
preocupados? A resposta tem de ser dura e directa: porque quando o público teve
possibilidade de escolher, verificou-se que tinha muito menos confiança nos
jornalistas do que se pensava. Quando se troca a leitura de jornais pela
leitura de uma notícia partilhada no Facebook não se está apenas a poupar o
custo e o trabalho da ida à banca – está-se a aceitar a recomendação de alguém
das nossas relações, alguém mais próximo de nós, alguém em quem confiamos ou
com quem nos identificamos. Mas não só: está-se também a virar as costas a um
jornalismo que muitas vezes nos diz muito pouco, um jornalismo que anda
demasiado à volta do seu umbigo, um jornalismo onde se desmerece as pessoas
comuns pois, na maioria das redações, todos elas não passam realmente de
“deploráveis”. Ou então de gente xenófoba. Ou homofóbica. Ou o que nos vier à
cabeça.
Muitos órgãos de informação nos Estados
Unidos reconheceram, depois de uma derrota que também foi sua – não houve um
único grande título que recomendasse o voto em Donald Trump –, que também eles
estavam como que “cortados” da realidade. O que se discutia nos círculos de
Washington, nos cafés do Soho em Nova Iorque ou nos restaurantes da moda em Los
Angeles nada tinha a ver com o que preocupava os munícipes de Lee Mavrakis ou
toda essa massa de eleitores a quem chamam “white trash”. Mas não sei se
aprenderam a lição e se arrependeram, pelo que continuo a ler nos sites “de
referência”.
Esta evolução tem um terrível efeito
sobre a saúde da democracia, pois a democracia exige que todos possamos falar
com todos. Na Grécia antiga isso fazia-se na Ágora, nos tempos modernos isso
faz-se nos meios de comunicação de massa. Faz-se ou fazia-se: ao desertarem, muitos
eleitores começaram a falar apenas com aqueles que pensam da mesma maneira, e
aí sim as redes sociais podem ter o efeito perverso de potenciar a fragmentação
e atomização do debate público, num processo de auto-guetização e
auto-segregação. Só se fala com quem pensa como nós, fecham-se os ouvidos a
todos os outros argumentos.
Mas este é o momento final, não o
inicial. As redes sociais, como a televisão por cabo, como o Google, como os
smartphones, estão para ficar – como esteve para ficar a máquina a vapor no dia
em que começou a substituir o trabalho braçal e a aterrorizar os ludistas. Como
o Sol não se tapa com uma peneira, não se pára um mundo em mudança. Usa-se é a
nosso favor, como sempre sucedeu no passado com qualquer desenvolvimento
tecnológico: o aço com que se construíram os canhões da I Guerra Mundial foi
também o que permitiu os carris dos caminhos de ferro e o esqueleto dos
arranha-céus.
Algo, no entanto, temos de reter: mais
do que as novas ignorâncias dos cidadãos comuns, mais do que os efeitos de
manada das redes sociais, quem tem falhado são os que insistem em não ouvir os
eleitores. Porque estes há muito que deram sinal de que querem falar, pois
estão zangados. E não se iludam: há mais problemas pela frente, pois em 2017,
pelo menos na Europa, todos estarão apenas empenhados em esconder o lixo
debaixo dos tapetes. O mais difícil ficará para depois, quando for ainda mais
difícil. E se formos a tempo.
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