O Livro dos Sábios (1870)
3 de 10 - DISCUSSÕES EM
FORMA DE DIÁLOGO
TERCEIRO DIÁLOGO - UM PANTEÍSTA e ELIPHAS LEVI
O PANTEÍSTA — É impossível conceber um Deus que seja outra coisa do que a
universidade dos seres.
ELIPHAS LEVI — Muito bem. És um discípulo de Espinoza, e te direi, no entanto, que nunca existiu e que não existe outro Espinoza senão que a colecção das obras deste filósofo.
O PANTEÍSTA — Esta é uma brincadeira de mau gosto. Bem sabemos que são homens que fazem os livros e que os "in-folio" não gravitam por si mesmos no espaço. Porém, não acontece o mesmo com os mundos; a lei fatal do movimento equilibrado os produz e pode destruí-los nas revoluções necessárias do Universo eterno.
ELIPHAS LEVI — Assim o nosso universo é fatal; é, por consequência, cego e surdo como a fatalidade. Como, pois, pode dar-nos a inteligência que não possui?
O PANTEÍSTA — O universo é inteligente e é por isso que o chamo de Deus.
ELIPHAS LEVI — Acreditas que no homem é o corpo o que produz o fenómeno do pensamento?
O PANTEÍSTA — Sinto o pensamento na minha cabeça e sei que ele se produz no meu cérebro.
ELIPHAS LEVI — Sim, como a música sobre um violino.
O PANTEÍSTA — Oh, vamos devagar! Queres dizer que a nossa alma serve-se do cérebro como de um instrumento; porém, este instrumento só os anatomistas conhecem o seu mecanismo? A criança que começa a pensar nem sequer sabe que possui um cérebro e nem se imagina a utilizar as suas fibras e os seus recursos. O cérebro funciona, pois, por si mesmo, sob o duplo impulso da natureza e da vida.
ELIPHAS LEVI — O senso comum assegura-nos que o nosso cérebro é alguma coisa, porém não é alguém. É algo do qual alguém determinou a forma e o uso e, se existem instrumentos que parecem tocar sozinhos, estes instrumentos não revelam senão a existência de um mecânico hábil e de uma música que o instrumento não inventa.
O PANTEÍSTA — Penso que é como dizes, porém, para mim, o grande mecânico e o músico das harmonias da natureza é o imenso, o eterno, universo, que é pela própria necessidade de ser, que é infinito, ao qual atribuís as funções inúteis do Criador. A palavra criação, por outro lado, é um absurdo; sim, se supõe que do nada pode sair algo; a substância é uma, infinita, eterna; as criações sucessivas e espontâneas não são mais que manifestações de aparências; combinações físicas; todas as ciências naturais tendem hoje a demonstrá-la. Tu mesmo estás constrangido a admiti-lo e não acreditas já no Deus despótico e caprichoso da Idade Média; no Deus inimigo da natureza, no Deus da vingança e dos milagres. Consideras Deus como a alma do universo, a alma diferente do corpo, dizes; porém, inseparável, acrescentarei, já que Deus não pode morrer. Sem o fenómeno da morte que deixa o corpo inerte e gelado, o homem seria indivisível e não se diferenciaria a sua alma do seu corpo. Não é, com efeito, a alma só que vive; é todo o homem, inteiro; e o pensamento é a luz da vida.
Não diferenciamos, pois, a alma do universo, do universo mesmo; o universo é o grande todo, inteligente e visível. Quando pensa, se lhe chama espírito, quando toma uma forma é matéria; porém, a matéria e o espírito não são dois seres, são duas formas de existência. A substância eterna e infinita é a génese do pensamento e da forma; não fora de si mesma onde não existe nada, senão em si mesma e por si mesma. É a isto que chamamos Deus.
ELIPHAS LEVI — Deixei que falasses e penso como tu sobre muitos pontos; porém, jamais admitirei que Deus seja o universo, porque isto me devolveria à idolatria dos séculos ignorantes em que se adorava o Sol e a Lua; tudo é de Deus, com certeza, porém, tudo não é Deus e a liberdade humana não deve deixar-se absorver pela grande fatalidade Divina que pareces admitir. Se tudo fosse Deus, o homem não seria responsável por nada e a moral seria uma quimera. Que ideia, então, nos caberia a Sabedoria Divina, os erros e as tolices humanas? Se entretanto fossemos absurdos, Deus seria ridículo. Deus mesmo seria o autor do mal e assim negar-se-ia a si mesmo; ou, a palavra de Deus não teria já sentido razoável. Deixemos ao deus Pan dos antigos, as suas flautas e os seus cornos.
Quando Jesus, morrendo sobre a Cruz, tinha proclamado a inviolabilidade da consciência humana e a liberdade da fé, confirmada pelo direito ao martírio, um piloto misterioso, chamado Thamuz, gritou às ilhas que o grande Pan havia morrido e escutaram-se vozes confusas que choravam o gigante da mitologia antiga. Deus, na humanidade, acabava de triunfar sobre a fatalidade e sobre a morte e a humanidade volta-se Divina, não por usurpação sacrílega ou por confusão das naturezas, senão por uma sublime aliança.
O PANTEÍSTA — Detém-te e não prolongues estas frases de sermão. És livre para elogiar ainda o Cristianismo; porém, ele é o que agora está morto e o grande Pan ressuscitou. O Cristianismo foi uma doença do espírito humano e faltou pouco para que a nossa pobre terra se tornasse uma morada de loucos; a demência da fé cega colocada acima da ciência e da razão, a dor preferida ao prazer, a miséria à riqueza, o celibato contra a natureza esgotando as fontes da fecundidade, o fanatismo feroz impondo-se pelo ferro e o fogo, a autocracia dos sacerdotes, o embrutecimento dos homens, a miséria dos povos; eis aí o Cristianismo. Ele é julgado pelas suas próprias armas.
ELIPHAS LEVI — Assim, segundo tu, fez-se bem em crucificar Jesus Cristo, e se Nero tivesse conseguido extirpar o Cristianismo, teria sido ele o verdadeiro salvador do mundo?
O PANTEÍSTA — Nada prova a existência histórica de Jesus Cristo. O Cristianismo é uma corrente de ideias que não provém de um só homem e tu mesmo tens afirmado e provado que o Cristo dos Evangelhos é uma figura simbólica do homem liberto das servidões legais, sacrificando-se livremente pelo triunfo da verdade e da justiça. Segundo o mito sagrado, o seu sacrifício era necessário para a salvação do mundo e os que o crucificaram foram os executores da alta justiça de Deus. No que se refere a Nero e a outros perseguidores, são universalmente condenados pela consciência humana. A verdade não deve impor-se pelo temor, deve provar-se pela razão; porém, os pagãos, os judeus e os cristãos foram todos igualmente fanáticos; e, de vítimas que foram desde o começo, tornaram-se verdugos desde o momento em que puderam sê-lo com impunidade. Nero não é mais espantoso do que São Domingos; Torquemada e Domiciano; e ainda há gente que chora a ausência das dragonadas. Conheces, por outro lado, a célebre máxima atribuída ao rei Luiz Felipe: "A responsabilidade só existe quando não se triunfa".
ELIPHAS LEVI — Aceito esta máxima. Que é, com efeito, uma coisa conquistada? É a coisa bem feita. Fazer bem é triunfar; e, aquele que não triunfa, é mais ou menos responsável pela sua torpeza.
As coisas, na realidade, estão de tal forma ordenadas pela Sabedoria Suprema que o mal não poderia ter um êxito real e durável, e que o bem, apesar de todas as demoras e de todos os obstáculos, chega sempre a seu fim. Falas do mal que se produziu a propósito do Cristianismo. Este mal passou em parte, e o que dele resta, passará. Porém, o bem ficou e ficará. Não é em nome de Torquemada, e sim em nome de Vicente de Paula que as irmãs de Caridade cuidam dos pobres órfãos. Alexandre VI jamais publicou uma constituição apostólica justificando o envenenamento e o incesto. A religião é santa, os homens é que são maus.
O PANTEÍSTA — Não, senhor, os homens não são maus. Falando assim, calunias a tua mãe; a santa e divina natureza; porém reflecte e te ressentirás de tua deplorável educação clerical. Sabes o que tornava mau Alexandre VI? É que ele se achava o vigário e o representante de Deus, que queima eternamente os seus inimigos; no entanto os inimigos do Papa, aos olhos do Papa, não são os inimigos de Deus? O veneno dos Bórgias era uma pena muito doce comparada com os suplícios do Inferno; e, quem sabe se este indulgente vigário de J. O. não dava indulgências para o outro mundo às suas garrafas de vinho de Siracusa. Diz-se que envenenava as hóstias; era uma forma de torná-las activamente indulgentes para a boa morte; não era ele o mestre dos mestres e o rei dos reis? Não era ele infalível, o que quer dizer, certamente, impecável? Ah! não nos fales das tuas perniciosas crenças; elas conduzem à apoteose de um novo Nero, sempre que este, no lugar da coroa dos Césares, leve a tiara dos pontífices. Não canonizaste o horrível e sangrento Chisleri?
Vosso Veuillot não verte ainda lágrimas de crocodilo sobre a abolição dos autos de fé? Oh! se esta gente retomasse por um instante o poder, como nos arrojariam a todos com os nossos filhos e as nossas mulheres, sob as rodas do carro carcomido que arrasta ainda o seu implacável Jaggrenat! Não te declares mais católico; tu que és um livre-pensador, ou cuidas que a santa inquisição de Roma não te peça conta das tuas obras! Deixa esse Vaticano do qual os deuses partiram há muito tempo, de onde até os ratos começam a fugir e sobre o qual se formam, desde a vitória de Mentana, nuvens de corvos e de abutres.
ELIPHAS LEVI — Alto lá, senhor! Se há corvos no Vaticano, há também águias. É a França que tem a Roma, e Roma tarde ou cedo, deverá contar com a França que marcha, como o sabes, à cabeça da civilização e do progresso. Segundo os sectários de Veuillot, que os abandonou, o Papa seria a reacção e a compreensão divinizada; porém, não será assim. O Papa será ou não será; eu acredito que deve ser e que não pode ser senão o Evangelho coroado.
O PANTEÍSTA — Estás ainda nisto e não vês que o Evangelho foi superado há muito tempo pelo bom senso e pela ciência. Existem coisas boas no Evangelho, bem o sei; é a boa semente misturada ao ancinho. Porém, há também ensinamentos bárbaros e doutrinas deploráveis, assim, perdoar os seus inimigos para que Deus os castigue ainda mais; não resistir ao mal; odiar o seu pai e a sua mãe, odiar-se a si mesmo, o que dá um sentido estranho ao conceito de amar ao próximo como a si mesmo; alentar a preguiça pela esmola e a injustiça pelo abandono voluntário do que de ti se quer roubar; preferir o isolamento estéril à vida familiar, odiar o mundo e fazer-se odiar por ele; pois bem, o mundo, no sentido do Evangelho, é a sociedade dos homens.
Matar ante o rei, ou melhor, ante Deus àqueles que não querem que o seu filho, ou seja, Jesus Cristo, representado pelo Papa, reine sobre eles; abjurar da sua razão, quebrantar os seus efeitos, adorar a humilhação e a dor, eis aqui o fundo destes evangelhos, tão insípidos; o resto, ou seja, os preceitos verdadeiramente morais, pertencem à filosofia de todos os séculos. Eis aí, o fundo da religião Cristã, na verdade; um homem razoável não pode hoje nem defender publicamente nem admitir em segredo, semelhante religião! O catolicismo deixou de ser uma Igreja; é uma seita e a mais horrível de todas as seitas. Até o protestantismo já não tem razão de ser e vai dissolvendo-se dia a dia no panteísmo que é a única religião universal e verdadeira.
ELIPHAS LEVI — Muito bem. Então tudo é Deus, eu sou Deus, tu és Deus, a tolice é Deus, o crime é Deus e por conseguinte, segundo tu, até Veuillot é Deus; o clericalismo é Deus e o Papa é Deus.
O PANTEÍSTA — Nada de brincadeiras indignas de ti. Deus é a afirmação e não a negação de todas as coisas; é o que é e não o que pretende ser; é a verdade e não a mentira: não tendes dito tu mesmo que o mal não tem existência real?
ELIPHAS LEVI — Absolutamente, sem dúvida! Porém, há no relativo uma existência demasiado real, já que opera contra o bem. Logo, esta acção, segundo tu, vem de Deus?
O PANTEÍSTA — Sim, como a tua sombra vem do teu corpo e como as doenças vêm da saúde.
ELIPHAS LEVI — Então o teu Deus esta enfermo quando os homens fazem o mal; e, quando dizem mentiras é o espírito de Deus que lhes empresta a sua sombra?
O PANTEÍSTA — A luz precisa da sombra para produzir as formas visíveis, e o que chamas de mal é necessário para o triunfo do bem. Deus faz sombra para manifestar a sua luz e não se mostra como luz senão para justificar a sua sombra; eis aqui o que quer dizer o vosso mistério de redenção, eis aqui a razão de ser do diabo, que é a máscara de sombra da face esplêndida de Deus, eis aqui o equilíbrio do céu e do inferno, eis aqui o Satã do livro de Job recebendo do mesmo Deus a missão de atormentar o justo; eis aqui porque os teus símbolos relatam que Jesus Cristo desceu aos infernos?
ELIPHAS LEVI — Então, há mais culpáveis? Todos os homens são inocentes; os anjos das trevas são os servidores da máscara Divina, a penalidade é uma injustiça, a moral é uma trapaça estendida aos débeis para fazê-los escravos dos fortes, os malvados são os mais poderosos auxiliares da virtude e o justo lhes deve as suas coroas? Não sentes, senhor, que a doutrina tão monstruosa é subversiva de toda a ordem e que, por conseguinte, é contrária a toda a verdade, porque a ordem é a verdade e o que é desordem é a mentira?
O PANTEÍSTA — O que dizes provêm do teu sistema de ocultismo, porém, no fundo pensas como eu.
ELIPHAS LEVI — Protesto! Pelo contrário. Creio em Deus, causa de tudo e não confundo a causa com o efeito. Creio na liberdade do homem e por conseguinte na sua moralidade. Concedo-te todo o resto.
ELIPHAS LEVI — Muito bem. És um discípulo de Espinoza, e te direi, no entanto, que nunca existiu e que não existe outro Espinoza senão que a colecção das obras deste filósofo.
O PANTEÍSTA — Esta é uma brincadeira de mau gosto. Bem sabemos que são homens que fazem os livros e que os "in-folio" não gravitam por si mesmos no espaço. Porém, não acontece o mesmo com os mundos; a lei fatal do movimento equilibrado os produz e pode destruí-los nas revoluções necessárias do Universo eterno.
ELIPHAS LEVI — Assim o nosso universo é fatal; é, por consequência, cego e surdo como a fatalidade. Como, pois, pode dar-nos a inteligência que não possui?
O PANTEÍSTA — O universo é inteligente e é por isso que o chamo de Deus.
ELIPHAS LEVI — Acreditas que no homem é o corpo o que produz o fenómeno do pensamento?
O PANTEÍSTA — Sinto o pensamento na minha cabeça e sei que ele se produz no meu cérebro.
ELIPHAS LEVI — Sim, como a música sobre um violino.
O PANTEÍSTA — Oh, vamos devagar! Queres dizer que a nossa alma serve-se do cérebro como de um instrumento; porém, este instrumento só os anatomistas conhecem o seu mecanismo? A criança que começa a pensar nem sequer sabe que possui um cérebro e nem se imagina a utilizar as suas fibras e os seus recursos. O cérebro funciona, pois, por si mesmo, sob o duplo impulso da natureza e da vida.
ELIPHAS LEVI — O senso comum assegura-nos que o nosso cérebro é alguma coisa, porém não é alguém. É algo do qual alguém determinou a forma e o uso e, se existem instrumentos que parecem tocar sozinhos, estes instrumentos não revelam senão a existência de um mecânico hábil e de uma música que o instrumento não inventa.
O PANTEÍSTA — Penso que é como dizes, porém, para mim, o grande mecânico e o músico das harmonias da natureza é o imenso, o eterno, universo, que é pela própria necessidade de ser, que é infinito, ao qual atribuís as funções inúteis do Criador. A palavra criação, por outro lado, é um absurdo; sim, se supõe que do nada pode sair algo; a substância é uma, infinita, eterna; as criações sucessivas e espontâneas não são mais que manifestações de aparências; combinações físicas; todas as ciências naturais tendem hoje a demonstrá-la. Tu mesmo estás constrangido a admiti-lo e não acreditas já no Deus despótico e caprichoso da Idade Média; no Deus inimigo da natureza, no Deus da vingança e dos milagres. Consideras Deus como a alma do universo, a alma diferente do corpo, dizes; porém, inseparável, acrescentarei, já que Deus não pode morrer. Sem o fenómeno da morte que deixa o corpo inerte e gelado, o homem seria indivisível e não se diferenciaria a sua alma do seu corpo. Não é, com efeito, a alma só que vive; é todo o homem, inteiro; e o pensamento é a luz da vida.
Não diferenciamos, pois, a alma do universo, do universo mesmo; o universo é o grande todo, inteligente e visível. Quando pensa, se lhe chama espírito, quando toma uma forma é matéria; porém, a matéria e o espírito não são dois seres, são duas formas de existência. A substância eterna e infinita é a génese do pensamento e da forma; não fora de si mesma onde não existe nada, senão em si mesma e por si mesma. É a isto que chamamos Deus.
ELIPHAS LEVI — Deixei que falasses e penso como tu sobre muitos pontos; porém, jamais admitirei que Deus seja o universo, porque isto me devolveria à idolatria dos séculos ignorantes em que se adorava o Sol e a Lua; tudo é de Deus, com certeza, porém, tudo não é Deus e a liberdade humana não deve deixar-se absorver pela grande fatalidade Divina que pareces admitir. Se tudo fosse Deus, o homem não seria responsável por nada e a moral seria uma quimera. Que ideia, então, nos caberia a Sabedoria Divina, os erros e as tolices humanas? Se entretanto fossemos absurdos, Deus seria ridículo. Deus mesmo seria o autor do mal e assim negar-se-ia a si mesmo; ou, a palavra de Deus não teria já sentido razoável. Deixemos ao deus Pan dos antigos, as suas flautas e os seus cornos.
Quando Jesus, morrendo sobre a Cruz, tinha proclamado a inviolabilidade da consciência humana e a liberdade da fé, confirmada pelo direito ao martírio, um piloto misterioso, chamado Thamuz, gritou às ilhas que o grande Pan havia morrido e escutaram-se vozes confusas que choravam o gigante da mitologia antiga. Deus, na humanidade, acabava de triunfar sobre a fatalidade e sobre a morte e a humanidade volta-se Divina, não por usurpação sacrílega ou por confusão das naturezas, senão por uma sublime aliança.
O PANTEÍSTA — Detém-te e não prolongues estas frases de sermão. És livre para elogiar ainda o Cristianismo; porém, ele é o que agora está morto e o grande Pan ressuscitou. O Cristianismo foi uma doença do espírito humano e faltou pouco para que a nossa pobre terra se tornasse uma morada de loucos; a demência da fé cega colocada acima da ciência e da razão, a dor preferida ao prazer, a miséria à riqueza, o celibato contra a natureza esgotando as fontes da fecundidade, o fanatismo feroz impondo-se pelo ferro e o fogo, a autocracia dos sacerdotes, o embrutecimento dos homens, a miséria dos povos; eis aí o Cristianismo. Ele é julgado pelas suas próprias armas.
ELIPHAS LEVI — Assim, segundo tu, fez-se bem em crucificar Jesus Cristo, e se Nero tivesse conseguido extirpar o Cristianismo, teria sido ele o verdadeiro salvador do mundo?
O PANTEÍSTA — Nada prova a existência histórica de Jesus Cristo. O Cristianismo é uma corrente de ideias que não provém de um só homem e tu mesmo tens afirmado e provado que o Cristo dos Evangelhos é uma figura simbólica do homem liberto das servidões legais, sacrificando-se livremente pelo triunfo da verdade e da justiça. Segundo o mito sagrado, o seu sacrifício era necessário para a salvação do mundo e os que o crucificaram foram os executores da alta justiça de Deus. No que se refere a Nero e a outros perseguidores, são universalmente condenados pela consciência humana. A verdade não deve impor-se pelo temor, deve provar-se pela razão; porém, os pagãos, os judeus e os cristãos foram todos igualmente fanáticos; e, de vítimas que foram desde o começo, tornaram-se verdugos desde o momento em que puderam sê-lo com impunidade. Nero não é mais espantoso do que São Domingos; Torquemada e Domiciano; e ainda há gente que chora a ausência das dragonadas. Conheces, por outro lado, a célebre máxima atribuída ao rei Luiz Felipe: "A responsabilidade só existe quando não se triunfa".
ELIPHAS LEVI — Aceito esta máxima. Que é, com efeito, uma coisa conquistada? É a coisa bem feita. Fazer bem é triunfar; e, aquele que não triunfa, é mais ou menos responsável pela sua torpeza.
As coisas, na realidade, estão de tal forma ordenadas pela Sabedoria Suprema que o mal não poderia ter um êxito real e durável, e que o bem, apesar de todas as demoras e de todos os obstáculos, chega sempre a seu fim. Falas do mal que se produziu a propósito do Cristianismo. Este mal passou em parte, e o que dele resta, passará. Porém, o bem ficou e ficará. Não é em nome de Torquemada, e sim em nome de Vicente de Paula que as irmãs de Caridade cuidam dos pobres órfãos. Alexandre VI jamais publicou uma constituição apostólica justificando o envenenamento e o incesto. A religião é santa, os homens é que são maus.
O PANTEÍSTA — Não, senhor, os homens não são maus. Falando assim, calunias a tua mãe; a santa e divina natureza; porém reflecte e te ressentirás de tua deplorável educação clerical. Sabes o que tornava mau Alexandre VI? É que ele se achava o vigário e o representante de Deus, que queima eternamente os seus inimigos; no entanto os inimigos do Papa, aos olhos do Papa, não são os inimigos de Deus? O veneno dos Bórgias era uma pena muito doce comparada com os suplícios do Inferno; e, quem sabe se este indulgente vigário de J. O. não dava indulgências para o outro mundo às suas garrafas de vinho de Siracusa. Diz-se que envenenava as hóstias; era uma forma de torná-las activamente indulgentes para a boa morte; não era ele o mestre dos mestres e o rei dos reis? Não era ele infalível, o que quer dizer, certamente, impecável? Ah! não nos fales das tuas perniciosas crenças; elas conduzem à apoteose de um novo Nero, sempre que este, no lugar da coroa dos Césares, leve a tiara dos pontífices. Não canonizaste o horrível e sangrento Chisleri?
Vosso Veuillot não verte ainda lágrimas de crocodilo sobre a abolição dos autos de fé? Oh! se esta gente retomasse por um instante o poder, como nos arrojariam a todos com os nossos filhos e as nossas mulheres, sob as rodas do carro carcomido que arrasta ainda o seu implacável Jaggrenat! Não te declares mais católico; tu que és um livre-pensador, ou cuidas que a santa inquisição de Roma não te peça conta das tuas obras! Deixa esse Vaticano do qual os deuses partiram há muito tempo, de onde até os ratos começam a fugir e sobre o qual se formam, desde a vitória de Mentana, nuvens de corvos e de abutres.
ELIPHAS LEVI — Alto lá, senhor! Se há corvos no Vaticano, há também águias. É a França que tem a Roma, e Roma tarde ou cedo, deverá contar com a França que marcha, como o sabes, à cabeça da civilização e do progresso. Segundo os sectários de Veuillot, que os abandonou, o Papa seria a reacção e a compreensão divinizada; porém, não será assim. O Papa será ou não será; eu acredito que deve ser e que não pode ser senão o Evangelho coroado.
O PANTEÍSTA — Estás ainda nisto e não vês que o Evangelho foi superado há muito tempo pelo bom senso e pela ciência. Existem coisas boas no Evangelho, bem o sei; é a boa semente misturada ao ancinho. Porém, há também ensinamentos bárbaros e doutrinas deploráveis, assim, perdoar os seus inimigos para que Deus os castigue ainda mais; não resistir ao mal; odiar o seu pai e a sua mãe, odiar-se a si mesmo, o que dá um sentido estranho ao conceito de amar ao próximo como a si mesmo; alentar a preguiça pela esmola e a injustiça pelo abandono voluntário do que de ti se quer roubar; preferir o isolamento estéril à vida familiar, odiar o mundo e fazer-se odiar por ele; pois bem, o mundo, no sentido do Evangelho, é a sociedade dos homens.
Matar ante o rei, ou melhor, ante Deus àqueles que não querem que o seu filho, ou seja, Jesus Cristo, representado pelo Papa, reine sobre eles; abjurar da sua razão, quebrantar os seus efeitos, adorar a humilhação e a dor, eis aqui o fundo destes evangelhos, tão insípidos; o resto, ou seja, os preceitos verdadeiramente morais, pertencem à filosofia de todos os séculos. Eis aí, o fundo da religião Cristã, na verdade; um homem razoável não pode hoje nem defender publicamente nem admitir em segredo, semelhante religião! O catolicismo deixou de ser uma Igreja; é uma seita e a mais horrível de todas as seitas. Até o protestantismo já não tem razão de ser e vai dissolvendo-se dia a dia no panteísmo que é a única religião universal e verdadeira.
ELIPHAS LEVI — Muito bem. Então tudo é Deus, eu sou Deus, tu és Deus, a tolice é Deus, o crime é Deus e por conseguinte, segundo tu, até Veuillot é Deus; o clericalismo é Deus e o Papa é Deus.
O PANTEÍSTA — Nada de brincadeiras indignas de ti. Deus é a afirmação e não a negação de todas as coisas; é o que é e não o que pretende ser; é a verdade e não a mentira: não tendes dito tu mesmo que o mal não tem existência real?
ELIPHAS LEVI — Absolutamente, sem dúvida! Porém, há no relativo uma existência demasiado real, já que opera contra o bem. Logo, esta acção, segundo tu, vem de Deus?
O PANTEÍSTA — Sim, como a tua sombra vem do teu corpo e como as doenças vêm da saúde.
ELIPHAS LEVI — Então o teu Deus esta enfermo quando os homens fazem o mal; e, quando dizem mentiras é o espírito de Deus que lhes empresta a sua sombra?
O PANTEÍSTA — A luz precisa da sombra para produzir as formas visíveis, e o que chamas de mal é necessário para o triunfo do bem. Deus faz sombra para manifestar a sua luz e não se mostra como luz senão para justificar a sua sombra; eis aqui o que quer dizer o vosso mistério de redenção, eis aqui a razão de ser do diabo, que é a máscara de sombra da face esplêndida de Deus, eis aqui o equilíbrio do céu e do inferno, eis aqui o Satã do livro de Job recebendo do mesmo Deus a missão de atormentar o justo; eis aqui porque os teus símbolos relatam que Jesus Cristo desceu aos infernos?
ELIPHAS LEVI — Então, há mais culpáveis? Todos os homens são inocentes; os anjos das trevas são os servidores da máscara Divina, a penalidade é uma injustiça, a moral é uma trapaça estendida aos débeis para fazê-los escravos dos fortes, os malvados são os mais poderosos auxiliares da virtude e o justo lhes deve as suas coroas? Não sentes, senhor, que a doutrina tão monstruosa é subversiva de toda a ordem e que, por conseguinte, é contrária a toda a verdade, porque a ordem é a verdade e o que é desordem é a mentira?
O PANTEÍSTA — O que dizes provêm do teu sistema de ocultismo, porém, no fundo pensas como eu.
ELIPHAS LEVI — Protesto! Pelo contrário. Creio em Deus, causa de tudo e não confundo a causa com o efeito. Creio na liberdade do homem e por conseguinte na sua moralidade. Concedo-te todo o resto.
(Continua)
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