PARA COMPREENDER A BÍBLIA
Por vezes tenho momentos em que a minha
fé estremece e procuro contornar o momento pensando por mim e não pelo que leio
em algumas passagens da Bíblia. O Livro Sagrado dos Cristãos tem resposta para
tudo desde que haja imaginação para o interpretar. Numa interpretação literal
surgem algumas passagens demasiado extremistas que assustam o “crente” que
acaba por vacilar se não houver uma explicação “não literal” dessa passagem. O
Antigo Testamento, que explica, ou tenta explicar a história secular de um “povo
escolhido” numa miscelânea com a história religiosa da humanidade daquela área
específica, como que um “Manual de Instruções” para se viver em comunidade,
assusta pela sua doutrina “olho por olho, dente por dente”. E abala a nossa fé
num Pai amoroso e compreensivo quando as acções do povo ignorante, que precisa
de ser educado, são sempre castigadas com grande rudeza, com a morte sempre no
horizonte, vinganças, sacrifícios e grande sofrimento. E por vezes o “castigo”
prolonga-se por várias gerações. Muito difícil de compreender, mas a Filosofia
existe para explicar estas incongruências.
Tenho falado da Bíblia que todos
conhecem, pois faz parte da nossa cultura. Mas hoje pretendo entrar no mundo
desconhecido da maioria dos crentes (e, talvez, não crentes) que discutem sobre
os ensinamentos bíblicos e dúvidas sobre a sua veracidade. Por esta
interpretação, muito bem investigada e estudada pela doutrina Rosacruz comecei a conhecer melhor os
meandros do livro sagrado. Como estudioso da Filosofia Rosacruz e reconhecendo a justeza dos seus ensinamentos, excepto
nalguns pontos em que os Evangelhos apontam para outro caminho (não quero dizer que a doutrina RC esteja
errada, mas sim que segue outro caminho que eu considero mais longo e mais
virado para o desenvolvimento dos variados veículos que suportam a vida na
terra, ao passo que eu me preocupo mais com a jornada fora do mundo material,
da vida do espírito e, a meu ver, mais importante para a evolução da Alma. No entanto a base de partida é a mesma, só
surgindo as dúvidas quanto a evolução no mundo espiritual, motivo porque acho a
doutrina Rosacruz muito importante mas que deve ser completada com o estudo da
Bíblia e aceitação da Ressurreição
em vez da Encarnação) vou
reproduzir aqui um texto sobre a Bíblia, editado na Revista Trimestral da
Fraternidade Rosacruz de Portugal, nº 289, referente aos meses de Julho, Agosto
e Setembro de 1983.
Emblema Rosacruz
A BÍBLIA
No capítulo X da CONFESSIO FRATERNITATIS
(um dos documentos publicados pela Fraternidade, em 1615), é aconselhada a
leitura aplicada dos textos sagrados. Todavia o autor reconhece, claramente,
que a sua compreensão constitui uma dificuldade para o leitor desprevenido. A
Bíblia não é fácil de ler.
Os grandes ocultistas que escreveram o
Zoár (o livro do estudo dos místicos judeus), diziam, ao estudar a Tora isto é,
a Lei (compreende os 5 primeiros livros da Bíblia, aos quais chamamos
Pentateuco), que o sentido vulgar das palavras formavam as vestes da Bíblia.
Com isto queriam dizer que as palavras ocultam um sentido muito mais profundo e
sublime do que podemos supor. É preciso, pois, não dar somente importância às
vestes, mas ao que está dentro.
Este sentido original, oculto, foi
deturpado por um sem número de intérpretes, tradutores e comentaristas. Fizeram
interpolações e até suprimiram partes julgadas “apócrifas”. Dos 47 tradutores
da Bíblia usadas nos países de língua inglesa, conhecida pela versão do Rei
Jaime, apenas conheciam a língua hebraica. Na Alemanha, Martinho Lutero fez uma
tradução servindo-se apenas de uma edição em latim.
Traduzir significa transplantar, para um
mundo novo, ideias e factos anteriores. Os diversos tradutores deste livro não
fizeram um bom trabalho, porque se apoiaram nas ideias e no universo do seu
tempo, para expressarem as ideias e o universo de vários séculos atrás.
1 – O Antigo Testamento
Os livros escritos em hebraico, antes do
cristianismo, que constituem a base da religião hebraica, foram recolhidos e
escritos ao longo de mais de mil anos. Foram obtidos através de fragmentos que
circulavam independentes, como folhas volantes e até da tradição, contadas
verbalmente, de pais para filhos, com o auxílio da memória.
No seu conjunto, os diversos textos da
Bíblia, chamados livros, foram escritos por variadíssimas pessoas, em número de
36. Entre elas havia agricultores, pastores, reis, advogados, um médico,
cobradores de impostos. Cada um expressava, naturalmente, a sua própria maneira
de interpretar e sentir os factos. Com tão grandes diferenças de preparação e
mentalidade, não admira que a obra final seja, forçosamente, bem difícil de
compreender.
Por isso, a veracidade dos factos, em
certos casos, só é verdadeira no seu conjunto. Os pormenores prestam-se o mais
das vezes, a aumentar dúvidas e alimentar simples hipóteses.
Para o judeu antigo, o hebraico era a
linguagem santa. As traduções não tinham qualquer valor. As cópias em hebraico
eram sempre feitas com total rigor, respeitando o texto original. Mas
permitiam-se alterações e modificações nas diversas traduções, o que já se
verificava com os judeus do Egipto e os Gregos da Palestina.
As cidades que os gregos fundaram na
Palestina, provocaram uma grande mudança na mentalidade dos judeus. As ideias e
hábitos gregos ganharam aderentes, principalmente nas classes abastadas. Mas,
infelizmente, esta influência não vinha do génio grego, de Pitágoras ou
Sócrates, mas de camadas sociais verdadeiramente corruptas, decadentes e
voluptuosas. Em nada contribuiu para a evolução espiritual do povo judeu.
A sua Bíblia está dividida em 3 partes:
a Tora ou a Lei, a que já nos referimos, os profetas e os livros da sabedoria.
Quando o povo judaico se dispersou deixaram de falar a sua língua mãe. Foi
preciso traduzir a Bíblia para diversas línguas, principalmente para o grego.
Entre os anos 283 e 247 antes de Cristo,
a Tora foi traduzida em grego. Depois seguiram-se os restantes livros. Esta é a
mais antiga tradução da Bíblia e foi chamada a versão dos setenta ou septuaginta,
porque nela trabalharam, talvez, 70 tradutores. A qualidade da sua tradução tem
merecido os mais diversos comentários. Mesmo assim, não podemos negar a sua
importância, tanto para os judeus como para os cristãos.
Sofrendo tratos tão penosos, a Bíblia
ficou um pouco desfigurada. Por exemplo, um dos salmos, na língua hebraica diz
“Nós Te celebramos, ó Senhor, e o teu
nome está próximo”, mas a tradução grega diz-nos: “nós Te celebramos, ó
Deus e invocamos o Teu nome”. O
sentido é, como se vê, diferente.
As dificuldades, porém, não terminam
aqui.
Nos primeiros anos da nossa era, Fílon
tornou-se muito conhecido como filósofo. Escreveu uma obra volumosa onde, de
maneira ingénua, quis harmonizar a teologia judaica com a filosofia grega,
fruto da influência que este povo exerceu na Palestina. O seu trabalho ficou
cheio de comentários e explicações. Usou uma forma alegórica, isto é, simbólica
e abstracta para exprimir as suas ideias. Mais tarde, os Padres da Igreja,
tomaram das suas obras grande parte do material para formar uma síntese do
pensamento judaico e grego, que se tornou conhecida por “teologia cristã”.
Entretanto, os judeus por causa da sua
excessiva aderência à raça, continuavam a rejeitar Cristo. E daí por diante
toda a tentativa para os salvar em conjunto foi abandonada. Por isso este povo
foi obrigado a dispersar-se sobre a terra e misturar-se, pela força, com outros
povos da terra.
2 – O Novo Testamento
Ao estudarmos o Novo Testamento, a base
do cristianismo, verificamos que os textos mais antigos são as cartas de Paulo.
Foram escritas no ano 48 depois de Cristo, portanto cerca de 20 anos depois da
morte de Jesus. As últimas foram escritas ainda mais 20 anos depois. Estas
cartas são o produto de circunstâncias particulares relacionadas com assuntos
específicos.
O Evangelho de Mateus e quase todos os
livros do Antigo Testamento foram escritos em língua hebraica. Deste evangelho
não temos uma única linha original, mas apenas a sua tradução grega, língua em
que foram escritos os restantes documentos.
Ao compararmos os escritos de Paulo com
os dos restantes evangelistas, vemos que, de uma maneira geral, não existem
contradições. Mas se escrevermos os textos dos 4 evangelhos lado a lado, em
sinopse, vemos facilmente que não são documentos distintos nem diferentes.
Todos utilizam termos e frases idênticas aos restantes. Deste modo, temos de
concluir que, ou cada evangelista se baseou nos mesmos documentos originais,
mais antigos, ou um copiou o outro.
O consenso geral parece inclinar-se para
que tivessem sido Mateus e Lucas a copiarem Marcos, que publicou primeiro os
seus escritos. Dos 661 versículos de Marcos, Mateus
reproduz cerca de 600, com uma linguagem muito parecida. E Lucas faz o mesmo a
cerca de metade do evangelho de Mateus.
Quanto a João Baptista, outro
evangelista, está fora de dúvida que era um Essénio, tal como Jesus e todos os
discípulos. Se estudarmos de maneira comparativa o seu evangelho com os
manuscritos de Qumram (chamados os Manuscritos do Mar Morto), onde residia uma
comunidade Essénia, ficamos a saber que existe uma fortíssima semelhança , até
mesmo uma dependência entre ambos.
Como verificamos, os evangelhos que hoje
conhecemos Não apresentam os primeiros testemunhos escritos, mas novas versões
de documentos ainda mais antigos que é preciso estudar para bem os compreender.
É o próprio Lucas quem o afirma (Lucas
1:1,3)! Se houve alguém que se inclinasse em ver em Jesus o “inventor” de
uma nova religião, temos de reconhecer, à Luz da investigação actual, que o
Novo Testamento se esforça por afirmar o contrário. A sua preocupação é tornar
claro que tudo é “antigo” que Jesus é a realização de todas as profecias. O
próprio S. Agostinho afirmou: “Aquilo que nós chamamos cristianismo sempre
existiu e alcança a sua plenitude com a aparição de Cristo encarnado”!
É preciso, portanto desenvolver um
estudo profundo em torno de todos estes assuntos. Não é fácil a tarefa, porque
os escritos essénios estão em código, em forma de criptogramas, tornando
espinhosa a missão do investigador.
Quando os Essénios se dispensaram e
alguns entraram para o cristianismo, cerca do ano 70 depois de Cristo, não
perderam a sua identidade. Mantiveram os seus ensinos reservados ou esotéricos,
que constituem a base do cristianismo e da filosofia Rosacruz. Permitiram, no
século XIII, a Cristão Rosacruz, a reforma deste sistema filosófico, o que
motivou a publicação da Confessio
Fraternitatis e de outros documentos.
O Novo Testamento nunca se refere aos
Essénios. A razão disto parece ser que, para Jesus, os pobres de espírito não
são os falhos de inteligência ou deserdados da vida espiritual. As
bem-aventuranças devem ser interpretadas à luz dos manuscritos essénios. E
assim ficamos a saber que estes “pobres de espírito” ou “pobres em nome do
espírito”, é uma alusão clara às regras essénias, que impediram o interesse
pelos bens materiais e às Leis gémeas da Consequência e do Renascimento,
conhecidas e estudadas por estes percursores do cristianismo. Eles sabiam
perfeitamente que todas as dívidas serão liquidadas, independentemente da
vontade e do tempo.
Não é por acaso que em Mateus, a
parábola da Luz segue a descrição das bem-aventuranças, um símbolo que só pode
ser compreendido pelos iniciados. Não se trata portanto de instruções
destinadas à multidão.
Sem este conhecimento, a Bíblia perde o
interesse para o homem intelectual, que pede à razão a prova de cada afirmação.
E podem até surgir traduções ambíguas. Por exemplo, numa versão muito corrente
em Portugal, lemos: “bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o
reino dos céus”; a edição inglesa (1) diz: “bem-aventurados os que sabem ser
pobres” e Lutero traduziu: “bem-aventurados vós, os pobres, pois vosso é o
reino dos céus”. Suprimiu “do espírito” e, como aversão anterior dá uma
interpretação material a este versículo, o que não corresponde à verdade. Até
S. Jerónimo corriam muitas versões da Bíblia, tanto do Antigo como do Novo
Testamento. S. Agostinho afirmava que os tradutores hebraicos se podiam contar
pelos dedos, mas não tinham número os greco-latinos. Só depois de 370 a.D.
surgiu uma nova versão que, com o tempo se tornou a mais conhecida entre nós,
com o nome de vulgata.
Este trabalho não é, porém, definitivo.
A divisão da Bíblia em capítulos concluiu-se apenas em 1263 e estes só ficaram divididos
em versículos muito mais tarde, em 1551!
A partir do IV século, sob a
responsabilidade directa da Igreja Grega, o cristianismo ficou envolvido em
inúteis e intermináveis discussões metafísicas. Depois vieram os escolásticos
da Idade Média latina, complicando tudo ainda mais. À distância de 2 000 anos,
o cristianismo é muito diferente do conhecido pelos primeiros cristãos, sendo
mesmo confundido com uma religião e até com catolicismo.
3 – O Valor dos Textos Sagrados
Com tantos erros nas diversas versões,
não devemos pensar que o valor da Bíblia se perdeu definitivamente ou que o
carácter de Jesus é, por isso mesmo, diminuído. Como se pode facilmente
verificar, quanto mais os autores se separam da morte de Jesus, tanto mais
modificam as suas narrativas. É um facto natural, porque os evangelistas não
eram biógrafos.
O Estudante que reunir uma sólida
preparação não se deixará jamais vencer pelo estilo literário dos antigos
escribas que, numa fidelidade total à palavra escrita, chegavam a manter duas
variantes da mesma narrativa, embora contraditórias, intercalando-as noutro
contexto.
Transpondo todas as barreiras, o
Estudante restituirá o texto à sua pureza original, liberto de todos os
artifícios de linguagem de que foram adornados. Chegará mesmo à altura de poder
discernir cada uma das sete possíveis interpretações da Bíblia: 1. A Histórica,
baseada em documentos escritos e factos reais do povo judeu; 2. Fisiológica,
relacionando o macro com o microcosmo, o corpo humano com o Corpo do Homem Cósmico,
que é a origem do paradoxo hermético “como é em cima, é em baixo”; 3 .
Astrológica, que estuda a relação das hierarquias espirituais com a humanidade;
4. Alquímica, onde se estuda que o objectivo da Grande Obra é a construção do
Corpo-Alma, o templo que é edificado sem ruído de pedra, nem de martelo, o
Dourado Manto de Núpcias; 5. A Mística, que se refere ao caminho do
desenvolvimento baseado no coração; 6. Cósmica, que se relaciona com o caminho
seguido através do desenvolvimento do cérebro e, finalmente, 7. Ou Ocultista,
que engloba as restantes e une a cabeça ao coração, num desenvolvimento
equilibrado que permite a iniciação.
O estudo desta disciplina leva o estudioso rosacruciano a avançar, cada vez
mais, até ao desvendar dos mistérios e ao despertar da compreensão sobre as
origens de tudo quanto existe e da sua relação com o ABSOLUTO. Removendo as
dificuldades que obscurecem a compreensão do texto, o Estudante será capaz de
descobrir o segredo que está próximo da sua mão, mas que é preciso procurar por
si mesmo, para o compreender sem apoio.
Ficará a saber que os segredos iniciáticos não se destinam a quem pretende
brilhar, mas aos que despertam a Luz interior no mais profundo silêncio, em
grave recolhimento, na humildade e na paz absolutas, depois de vencidos todos
os desejos e paixões vis.
Então, descobrirá o que governa os homens, o que ofusca o mundo. Despertará
a chama que abraza o horizonte e verá grandes coisas. E o sopro divino, que faz
voar rochedos, que rasga clarões e dá vida às coisas, tornará leves todas as
provas suportadas para conquistar tal estado. Corresponde, por isso à palavra
de ordem CALAR, pois o tesouro descoberto não interessa a ninguém que não tenha
subido a simbólica montanha onde se encontra o templo que é sustentado por sete
colunas onde se encontram grandes tesouros (2).
(1) Editada pela Cambridge University Press, 1952
(2) As sete colunas
representam simbolicamente as diferentes etapas da via Rosacruz: 1. Postulante;
2. E. Regular; 3. Probacionista; 4. Discípulo; 5. Irmão Leigo; 6. Adepto; 7.
Irmão Maior.