O
COLAPSO PREVISTO DO SNS
Já há algum tempo que arquivei uma entrevista que a revista
"Cuida", da Ordem dos Enfermeiros, fez a António Arnaut, o artífice
do Serviço Nacional de Saúde e pelos vistos os seus receios concretizaram-se
com a degradação cada vez maior da qualidade dos nossos políticos e o alto
nível de corrupção e má gestão precipitaram tudo no precipício. E não só!
Portugal nunca chegou tão baixo e nunca esteve tão mal visto perante a opinião
internacional como está hoje. A baixa qualidade dos nossos líderes não lhes
permitem ter consciência desta hecatombe, porque têm a inteligência limitada e
julgam que a culpa é sempre dos outros. Nunca assumem responsabilidades e medem
os portugueses pela mesma baixa bitola não acreditando que eles compreendam a
verdadeira situação em que o país se encontra.
Vejamos a entrevista.
O
SNS ESTÁ A CORRER GRAVES RISCOS
Revistacuida.ordemenfermeiros.pt
ENTREVISTA a António Arnaut
É
com preocupação assumida que o pai do Serviço Nacional de Saúde (SNS) vê o
estado actual do seu “filho”, que considera estar a ser ameaçado pelo contínuo
subfinanciamento e falta de recursos. E sem qualquer pudor ou inibição, António
Arnaut assume: “A Saúde tem de ser prioritária”, principalmente numa
conjuntura, como a actual, em que o país tem um Governo socialista.
CUIDA – É considerado o pai do Serviço Nacional de Saúde
(SNS). É um rótulo que o aborrece ou sente-se confortável com ele?
António Arnaut (AA) – Não me incomoda
porque é uma designação carinhosa. As pessoas sabem que sou o autor da Lei que
criou o SNS e usam essa expressão popular. Mas o que tem valido ao SNS não é o
pai, frágil e muitas vezes cuja voz não é ouvida e não chega a Lisboa, embora
se levante sempre em defesa do SNS quando ele está em risco. O que tem valido é
a mãe. A mãe? – perguntam às vezes. Sim, a mãe, a Constituição da República. Se
não fosse a Constituição já tinha sido revogada a lei fundadora, que é de 1979.
Em 1982, um Governo de Pinto Balsemão revogou a lei fundadora e foi o Tribunal
Constitucional, considerando que essa lei era contra a Constituição e
reconhecendo a Saúde como um direito fundamental, travou esse ímpeto. Depois
dessa altura vários Governos causaram malfeitorias e amputações ao SNS, que foi
resistindo graças à Constituição da República e à consciência popular na defesa
de um direito fundamenta. Hoje, o SNS é uma reforma querida, amada pelo povo
português. É isso que lhe tem valido, de tal modo que a direita neoliberal –
porque há uma direita social que sempre defendeu o SNS – que quer reduzir os
serviços públicos, sobretudo saúde e educação, à sua expressão mais simples,
até se rendeu ao SNS graças aos resultados obtidos. Eu tenho muita honra em ter
dado o primeiro passo e de ser o autor da Lei. Mas a mãe, a verdadeira matriz,
é a Constituição.
CUIDA – Como vê o estado actual do SNS?
AA – Com preocupação. Tenho a percepção de que o
SNS está a correr graves riscos. Já vem de trás. Há muitos anos que há uma
política de subfinanciamento e de tentativa de enfraquecimento do SNS, que se
agravou no último Governo e não foi tão nociva graças ao Paulo Macedo. Tenho de
lhe fazer justiça porque o objectivo do primeiro-ministro de então, Passos
Coelho, era mesmo acabar com o SNS como ele está concebido: universal, geral e
tendencialmente gratuito. Aberto a todos, que presta a todos os mesmo cuidados
de saúde. O objectivo dele era reduzir o SNS a uma espécie de Santa Casa da
Misericórdia para prestar serviço apenas aos pobres. Simplesmente, se o SNS
fosse reduzido a um serviço destinado aos pobres, naturalmente perdia qualidade
e passava a haver uma saúde de primeira e uma saúde de segunda. A determinada
altura, Paulo Macedo verificou que não podia fazer isso, que ia contra a sua
sensibilidade social, contra a vontade profunda do país e travou os ímpetos de
Passos Coelho. O país deve-lhe isso, embora Paulo Macedo tenha tomado muitas
medidas negativas relativamente ao SNS.
“Há
uma política de subfinanciamento e de tentativa de enfraquecimento do SNS”
CUIDA – Quais são as principais ameaças hoje em dia ao
SNS?
AA – O sector privado tem um papel importante mas
deve ser fiscalizado pelo Estado. Mas dentro do sector privado, tem de se
distinguir entre um sector liberal em que os médicos exercem de forma
individual ou autónoma, em grupos de três ou quatro médicos, e o sector
mercantilista dos grandes grupos económicos. Eu diria que as grandes
fragilidades e ameaças são as mesmas de sempre porque desde que o SNS foi anunciado,
porque ele era uma necessidade imperiosa de um país que vivia numa situação tal
que a maioria dos portugueses antes do 25 de Abril morriam sem ter acessos a
cuidados de saúde. As pessoas para irem ao hospital tinham de pagar. Só não
pagava nada quem tinha um atestado de indigência.
As ameaças que pairam
sobre o SNS já não são propriamente as mesmas porque há hoje um largo consenso
nacional em torno do SNS, embora algumas pessoas digam que o apoiam, procuram
diminuí-lo e degradá-lo. Mas sobretudo é o financiamento. Desde sempre que o SNS
é subfinanciado. Depois é o problema dos recursos humanos. Hoje o SNS debate-se
com grandes dificuldades do ponto de vista humano de falta de médicos e
enfermeiros, sobretudo, e também de técnicos. Estão em número insuficiente.
Ainda agora tivemos informação de que faltam muitos enfermeiros no país. O
Governo está a tentar prover essa situação mas os males infligidos ao SNS,
sobretudo nos últimos quatro anos do Governo que nos precedeu, são males graves
que se estão agora a acentuar-se: falhas em todo o sítio, falta de meios
técnicos, falta de meios humanos. Ainda agora, a propósito da gripe foi
noticiado que este ano vamos ter mais uma centena de mortos em consequência da
gripe por falta de meios humanos.
O SNS tem de ser
objecto da preocupação dominante dos governantes, qualquer que seja a sua cor
política. Claro que sendo um Governo de esquerda, um Governo socialista é
suposto, é lógico, que olhe com outra atenção para os direitos sociais e a
Saúde é um direito social. Mas mesmo um Governo socialista tem de estar atento
porque há pressões dos grupos económicos ligados à Saúde para negligenciar o
sector público. A Saúde movimenta 14/15 mil milhões de euros – que é o
Orçamento do Estado mais aquilo que os privados gastam na Saúde – e é um filão
apetecível para os negócios e para as negociatas.
CUIDA – Está preocupado com o SNS?
AA – Tenho alguma preocupação. Eu sei o que se
passa porque sou utente do SNS. E mesmo assim, por ventura, quando marco uma
consulta talvez até vejam quem sou e talvez me ponham para cima. Mas eu sou um
utente normal, frequento as unidades do SNS e sei o que se passa. O que se
passa é que os profissionais chegaram à exaustão e isso reduz a sua capacidade.
Não é só o seu rendimento, é o seu discernimento. E na Saúde, como um piloto de
aviões, não pode haver qualquer falha. Eu estou em contacto com o Dr. Adalberto
Campos Fernandes, é muito meu amigo, é uma pessoa com uma grande experiência de
gestão e de intervenção no campo da Saúde e ele está muito atento a essas
questões e fará tudo o que for possível para a remediar. Não é para resolver de
um momento para o outro, mas vamos ter esperança porque sempre é um Governo
socialista apoiado por partidos de esquerda que tem uma obrigação estrita.
Qualquer Governo tem uma obrigação geral, mas um Governo da esquerda, que preza
os direitos sociais e a dignidade da pessoa humana, além da obrigação geral,
tem a obrigação estrita, específica.
CUIDA – Mas no passado já alguns Governos socialistas
tomaram medidas que foram muito criticadas. Foi um Governo socialista a
introduzir as taxas moderadoras…
AA – Sim e aí tomei uma posição. Essas taxas
moderadoras para cirurgias e internamentos não eram taxas moderadoras, eram
formas de copagamento. Aí tive de criticar duramente o Correia de Campos. Sou
amigo dele desde o tempo em que fui ministro, era meu conselheiro informal, mas
sou mais amigo do SNS. Tive de o criticar porque não estava a agir bem. Quando
digo um Governo socialista refiro-me a um Governo inspirado pelos princípios da
dignidade da pessoa humana. Não basta ter o rótulo. Nesse caso, o rótulo não
correspondia à acção.
CUIDA – Os números recentes da OCDE indicam que faltam
30 mil enfermeiros em Portugal em relação à média. Como vê estes números?
AA – Os número não importam de forma isolada. O que
importa é que nós vamos a um serviço público do SNS e verificamos logo que há
falta de enfermeiros e de médicos. E isso não pode acontecer porque dada a
expansão do sector privado ou mercantil houve uma retracção do sector público.
O sector mercantil só se expande se o SNS se reduzir correspondentemente. Esse
problema tem de ser resolvido e evitar que o SNS se veja na contingência de ter
de contratar profissionais por períodos de fins-de-semana ou de dias que são
uns precários que nunca se integram nas respectivas equipes e que afectam a
qualidade do serviço prestado. Por exemplo, numa equipe de urgência chega lá um
“intruso”, forma de expressão, que foi contratado por uma dessas empresas
mediadoras e como é que se integra nessa equipe que não conhece e nem tem a
cultura desse hospital? Isso tem de acabar. Isso é dos males mais graves do
SNS. Não apenas da exaustão de que falei há pouco, mas a precariedade de alguns
profissionais que trabalham lá dessa forma proletária. Isso tem de acabar
porque é humilhante para eles e é perigoso para o serviço. Portanto,
subfinanciamento que envolve a dificuldade de contratação de pessoal e a
dificuldade de renovação tecnológica. Uma certa degradação que se verifica nos
serviços em consequência disso. Depois tem havido ao longo dos tempos uma falta
de atenção e de cuidado por parte dos governantes. Repito a esperança que tenho
de o ministro Adalberto Campos Fernandes ter esse cuidado. Ele está a agir com
cuidado, com atenção e ponderação porque conhece muito bem o sector. Eu espero
que essa ponderação resulte em benefício do SNS.
CUIDA – Assumir a Saúde como uma prioridade?
AA – Sim, assumir a Saúde como uma prioridade
porque a Saúde tem a ver com a dignidade da pessoa humana. Uma pessoa morrer
sem assistência médica é um crime que lesa a dignidade. Se todos tivessem
acesso oportuno a cuidados de Saúde, até do ponto de vista económico, podia ser
compensador porque o cidadão, em vez de estar inválido um mês à espera de uma
consulta ou de um tratamento ou cirurgia, se fosse logo tratado poderia
regressar ao mercado de trabalho. Mas isso não se pode pôr em termos de
contabilidade. A medicina e a enfermagem não são actos correntes da vida. São
actos de solidariedade e isso é esquecido porque vivemos nunca sociedade
desumanizada. Nas unidades do SNS isso não pode ser, aí todos devem ser iguais
em dignidade e direitos e aí deve haver o respeito absoluto pela dignidade da
pessoa humana.
“Um
Governo socialista é suposto, é lógico, que olhe com outra atenção para os
direitos sociais e a Saúde é um direito social”
CUIDA – Os constrangimentos orçamentais podem pôr em
causa a dignidade humana?
AA – Claro. Têm posto em causa o nosso SNS e põem
em causa a dignidade da pessoa humana. Quantas pessoas morrem porque não foram
atendidas a tempo … É claro que há-de haver sempre falhas, isso é da natureza
humana. Não podemos almejar a perfeição, mas podemos tentar chegar próximo
dela. É preciso prever para prover. Não é deixar que as coisas aconteçam.
“O
cuidado permanente, o zelo, a dedicação recai sobre o enfermeiro”
CUIDA – Referiu que os enfermeiros, a par dos médicos,
são o garante do SNS. Face aos poucos recursos, acha que a classe deve ter uma
posição de força perante o Governo ou todos os profissionais de saúde devem
assumir uma posição conjunta?
AA – Os enfermeiros são absolutamente
indispensáveis para o bom êxito, a qualidade e a respeitabilidade do SNS.
Fala-se muito dos médicos mas os enfermeiros são tão indispensáveis como os
médicos. Todos se completam. Eu costumo dizer que o médico diagnostica e
prescreve, e o enfermeiro cuida. Já fui operado algumas vezes e o médico vai lá
e opera, mas depois durante a noite quando toco à campainha que está à cabeceira
da cama quem vem ter comigo é o enfermeiro. Esse está sempre de serviço.
Verdadeiramente, o enfermeiro é que cuida. Portanto, os enfermeiros têm de ser
organizar – e estão organizados – de forma a reivindicarem aquilo que lhe é
devido. Mas ter também em consideração que às vezes a greve não resolve nada. A
greve é sempre feita não contra a entidade patronal, mas neste caso as greves
não prejudicam a entidade patronal, prejudicam o cidadão, os doentes, os
utentes. Por isso é que as greves do pessoal de Saúde são questões muito
delicadas. Elas são legítimas porque estão na lei, mas às vezes não são justas
ou não são proporcionais entre o mal que causam e o bem que pretendem obter.
CUIDA – Nas suas palavras, os enfermeiros é que
cuidam. Acredita que os enfermeiros são o primeiro rosto do SNS junto das
pessoas?
AA – São o rosto mais duradouro. O enfermeiro está
todo o dia e toda a noite, o médico dá consulta, prescreve e no caso de uma
intervenção cirúrgica faz o seu trabalho, vai-se embora e depois tudo o que se
passa a seguir é o enfermeiro. O cuidado permanente, o zelo, a dedicação recai
sobre o enfermeiro. O enfermeiro é que tem de aplicar a terapêutica, é que tem
de ver a evolução da doença. O enfermeiro é permanente, o médico é fugaz. Todas
as profissões médicas completam-se e devem harmonizar-se no interesse do
doente.
CUIDA – Enquanto utilizador, o que espera do SNS para os
próximos anos?
AA – Espero que me dê mais algum tempo de vida
porque estou vivo graças ao SNS. Os tratamentos que faço não podia fazer se
tivesse de os pagar. A minha reforma não dá para isso e como eu a grande
maioria do povo português. Espero que o SNS se recomponha dos abalos que tem
sofrido, das amputações que lhe têm sido infligidas, que recupere a qualidade e
credibilidade que está um pouco afectada. Que os seus profissionais recuperem a
respeitabilidade que lhes é inerente à função social nobre que exercem e que o
SNS se consolide como a grande reforma do século XX português que foi e é
porque o SNS continua sempre em reforma. O SNS continua sempre em
aperfeiçoamento. Eu costumo dizer que fiz a lei mas o SNS é feito todos os dias
pelos seus profissionais. Eles é que têm mantido o SNS e lhes têm garantido a
qualidade. São eles os verdadeiros obreiros do SNS. Fazer a lei é o mais fácil,
difícil é manter o SNS vivo. Espero que o SNS esteja vivo e cada vez mais vivo,
dignificado e forte.
CUIDA – O seu SNS não é, portanto, uma utopia como já se
afirmou no passado?
AA – Não é uma utopia. Ele está aí com 37 anos.
Como nós na nossa vida sofremos percalços e acidentes de percurso, também o SNS
sofreu muito desde aquele caso em 1982 em que o quiseram revogar até muitas
outras medidas que foram tomadas como o encerramento de unidades que não
precisavam de ser encerradas, reformas mal alinhavadas. Tudo isso para
desacreditar o SNS. E depois a pressão do sector privado mercantil que o quer
reduzir à expressão mais simples para expandir os negócios, as parcerias
publico-privadas, etc. Porque é que aqui em Coimbra, como em outras cidades,
havendo tantas unidades de qualidade do SNS, há também tantas do sector
privado? Elas não são todas necessárias. Para o sector privado ter clientela,
lá são clientes e não utentes, é preciso reduzir o sector público e retirar do
sector público alguns profissionais.
CUIDA – O que falta então ao SNS para se afirmar perante
essa ameaça do sector privado que identifica?
AA – O SNS está em constante afirmação perante o
sector privado. O SNS existe e sua existência é visível, actuante. O sector
privado quer é reduzi-lo, enfraquece-lo, levando os melhores profissionais e
colaborando com o poder político. Tem havido uma certa cumplicidade entre
muitos agentes políticos e os agente económicos para reduzir o SNS. O que falta
é dar as condições aos profissionais para o exercício digno e qualificado da
alta função que todos exercem no SNS e também o financiamento financeiro
necessário para que o SNS possa respirar. Nós conhecemos as limitações que nos
são impostas pelas condições em que vivemos e pelas leis de Bruxelas, mas
também conhecemos as capacidades que o SNS tem de as superar. Estes 37 anos
foram difíceis mas chegámos aqui e temos dos melhores indicadores da Europa. O
SNS é um corpo vivo no tecido social, o SNS é uma esperança real. Agora tem é
de ser apoiado, tem de ser reformado daquilo que precisa de ser reformado e tem
de ser amparado. Se os governantes compreenderem a sensibilidade e as
aspirações dos utentes, que somos todos nós, que é o país e é o povo, então o
SNS tem uma sobrevida garantida.
Sem comentários:
Enviar um comentário